CAPÍTULO 3 O imaterial na música
1. O que você identifica como material e imaterial nas práticas musicais que conhece?
Entre os elementos materiais, podemos citar os instrumentos musicais, incluindo o corpo humano e diversos outros objetos que podem ser usados para fazer música, como foi mostrado no livro do 6º ano. Também podemos considerar os elementos físicos das paisagens e dos espaços onde se faz música, que podem interferir na experiência musical, como confirmam alguns exemplos no livro do 7º ano.
Os elementos imateriais da linguagem musical (como timbre, ritmo, melodia, harmonia, entre outros) podem ser associados a outros elementos imateriais (como tempo, emoções, significados, fórmas, símbolos, divindades etcétera), dependendo das experiências pessoais ou das tradições e culturas às quais estão vinculados.
Há diversas fórmas de registrar os aspectos imateriais que fazem parte da vida e da música, seja pela memória, seja pelas palavras de diferentes línguas, ou por meio de desenhos e pinturas, como na imagem da abertura do capítulo, que reproduz parte de um antigo manuscrito do povo Asteca.
2. Observe a imagem: que elementos imateriais você associa a esses desenhos? Você identifica algum registro musical neles? Onde?
Faça no caderno.
PARA REFLETIR
Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
- Que sons ou músicas você relaciona com espiritualidade, ancestralidade ou outros elementos imateriais?
- Juntos, pensem: vocês lembram ou conhecem músicas ou sons que tenham o mesmo sentido ou significado para pessoas de diferentes culturas ou regiões?
SOBREVOO
Aspectos imateriais em práticas musicais
Faça no caderno.
1. Você já ouviu o toque de algum sino como o dessa imagem? E de sinos de outros tipos?
Esse sino é de uma igreja católica em São João del-Rei ( Minas Gerais). Nessa cidade, além dos toques para marcar as horas do dia e o horário das missas, os sinos são parte de uma tradição muito antiga: diferentes toques são utilizados para indicar diversas situações da vida na comunidade, como festejos ou ritos fúnebres. Atentando-se aos nomes de alguns toques, é possível perceber a variedade de cerimônias religiosas ou de eventos do cotidiano aos quais se associam: Toque de Finados, Toque de Treva, Toque de Parto, Ângelus, A Senhora é Morta, Toque de Cinzas, Toque de Incêndio, Toque de Natal, Toque Chamada de Sineiros, Toque de Ano-Novo. Para executar esses toques, são usados conjuntos de até sete sinos de diversos tamanhos com diferentes combinações rítmicas. Além disso, há maneiras distintas de se golpear os sinos: pancadas, badaladas e repiques são realizados com o sino parado; já o dobre é realizado com o sino em movimento. Para momentos festivos, os toques são mais animados, com andamento mais rápido; para momentos relacionados à morte, os toques são mais lentos, mais contemplativos.
• Vários vídeos na internet mostram toques de sinos como os comentados aqui, basta procurar em alguma ferramenta de busca por “toques de sinos” ou pelo nome dos toques citados no texto.
As pessoas que guardam e transmitem os conhecimentos sobre esses toques e suas técnicas de execução são chamadas sineiros. Em São João del-Rei, somando profissionais e aprendizes, há mais de 50 deles. A imagem a seguir mostra dois sineiros atuando em uma igreja da cidade.
Além dos toques diários e dos tradicionais, existem as chamadas batalhas de sineiros, que ocorrem no quarto fim de semana da Quaresma. Nessa batalha, sineiros de diferentes igrejas, do alto das torres dos sinos, executam alternadamente alguns toques. O objetivo de cada sineiro é responder o mais rápido possível aos que tocaram antes e realizar o toque com ainda mais técnica.
2. Escute um toque de sinos de São João del-Rei executado na festa de Nossa Senhora da Boa Morte.
Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.
Foco na História
Sons com funções semelhantes em épocas e culturas diferentes
No sistema de toques de sinos de São João del-Rei, cuja prática é transmitida oralmente, podemos perceber relações com pelo menos duas culturas e tradições formadoras do Brasil desde a época colonial: a europeia e a africana. Alguns toques mantiveram sonoridades próximas das que eram realizadas em vilas e cidades do Brasil colonial (e também em outras colônias portuguesas), enquanto outros foram agregando também elementos afro-brasileiros.
Muito antes do início da colonização das Américas no século dezesseis, era comum na Europa haver sinos nas igrejas. Há registros da utilização de sinos em igrejas católicas que datam de mais de mil anos. Os mais antigos se referem à região de Campânia, no sul da Itália, de onde vêm também as palavras campanologia (a técnica de fabricação de sinos) e campana, usada muitas vezes como sinônimo de sino. Os sinos eram uma das principais formas de comunicação da igreja com a população. Suas funções mais antigas talvez sejam a de demarcar a passagem do tempo e a de indicar os momentos de ritos religiosos. Havia também, nesse período, toques específicos para diferentes situações do cotidiano, como na tradição que se mantém em São João del-Rei. Além disso, podemos dizer que o alcance do som estabelecia uma espécie de demarcação sonora da comunidade de cada igreja, isto é, da paróquia. Até hoje, os sinos convocam as pessoas para a congregação, para o rito religioso.
Influências de manifestações afro-brasileiras podem ser percebidas sobretudo nos repiques realizados em São João del-Rei com conjuntos de três sinos. Ritmos organizados assim, com três instrumentos do mesmo tipo, porém de tamanho e altura diferentes, são perceptíveis também, por exemplo, nos três instrumentos principais (tambor grande, meião e crivador) do Tambor de Crioula do Maranhão, que podem ser observados na fotografia; no conjunto tradicional de três atabaques do candomblé (rum, lê e rumpi) ou ainda nos três tipos de berimbau da capoeira (gunga, médio e viola). Em geral, um dos instrumentos tem a função de demarcar um padrão rítmico, que então serve de referência para os outros dois; um desses dois instrumentos geralmente tem um toque mais constante, enquanto o outro tem a função de executar diversas variações rítmicas. Nos toques de três sinos de São João del-Rei, é o sino menor que conduz o toque, enquanto os outros dois – que têm nome igual ao dos instrumentos do Tambor de Crioula, meião e grande – compõem entre si uma espécie de pergunta e resposta.
3. Escute um trecho da música “Benção de mamãe”, de Gilvan do Vale – uma canção tradicional do Tambor de Crioula.
Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.
Transcrição do áudio
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
Botou guia para me ajudar na copa do meu chapéu
Enfeitando meu chapéu na copa do meu chapéu
E mais força para me dar na copa do meu chapéu
Colega tu me ajuda na copa do meu chapéu
Que eu também vou te ajudar na copa do meu chapéu
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
Colega tu vem comigo na copa do meu chapéu
Tu não vai me deixar na copa do meu chapéu
Morena quero te ver na copa do meu chapéu
Entra na roda para brincar na copa do meu chapéu
Enquanto eu canto toada na copa do meu chapéu
Bota a saia para rodar na copa do meu chapéu
Vem andando me ver na copa do meu chapéu
Quem mandou me acompanhar na copa do meu chapéu
O matraca fala alto na copa do meu chapéu
Deixa o tambor grande ganhar na copa do meu chapéu
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
A benção minha Mãe, a benção Papai do Céu!
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu
São Benedito botou guia na copa do meu chapéu (2X)
Na copa do meu chapéu
Na copa do meu chapéu
Na copa do meu chapéu
Trecho da canção "Bênção de mamãe", de Gilvan do Vale
Sons e espiritualidade em outros contextos
Não é exclusividade das religiões cristãs a presença de sinos mediando a relação com o imaterial.
Os budistas, por exemplo, usam diferentes sinos em momentos de oração: um deles é pequeno e sem badalo, cujo formato lembra uma tigela de metal, e é tocado com um bastonete, geralmente feito de madeira. Há também sinos bem grandes, como pode ser observado na fotografia, para demarcar momentos especiais, como a passagem do ano-novo. Estes últimos geralmente trazem gravadas em sua superfície escrituras ou imagens associadas à doutrina budista.
Em alguns templos de religiões afro-brasileiras, há também um sino de mão, feito de metal com uma haste de madeira ou só de metal, chamado adijá, que pode ser visto nessa imagem. Ele pode ter de duas até sete sinetas e é usado pelo líder espiritual para mediar a conexão do fiel com as divindades.
Para experimentar
Criação e improvisação rítmica
Que tal organizar uma improvisação rítmica com três instrumentos, usando como referência os exemplos citados no Foco na História? Para isso, você e seus colegas precisarão de um conjunto de pelo menos três instrumentos de percussão do mesmo tipo: por exemplo, três pandeiros, três timbas ou três agogôs.
- Montem um grupo para cada trio de instrumentos disponíveis.
- Cada grupo criará um toque bem simples para ser mantido repetidamente com um dos instrumentos.
- Em seguida, criem outro toque, também simples, mas que seja diferente do primeiro e que possa ser mantido junto com ele.
- Tendo como referência a base rítmica mantida pelos dois primeiros instrumentos, o terceiro fará improvisações alternadas com pausas. É fundamental ficar atento a essas pausas, pois elas evitarão que a improvisação pareça um amontoado aleatório de sons. Elas devem estimular a percepção – tanto por quem ouve quanto por quem toca – de frases musicais, produzidas com intencionalidade.
- Conversem todos juntos sobre a atividade e, se ela foi realizada em vários grupos, cada um pode mostrar para a turma os toques que inventou para a base rítmica e uma improvisação.
Contar e cantar histórias tradicionais
Você conhecerá agora um exemplo em que as tradições e histórias de um povo são transmitidas por meio da associação entre palavras, gestos, ritmos e melodias. É o que acontece no canto Pemsori, um tipo de canto narrativo da Coreia do Sul no qual, como em outras manifestações artísticas orientais, o artista que o realiza trabalha a música com a fala e com movimentações corporais, que ajudam a caracterizar personagens e a expressar a dramaticidade das histórias tradicionais apresentadas.
O nome desse canto vem da união de duas palavras coreanas: pan (
) e sori (
). A primeira significa "lugar com muita gente" e a segunda, "som". Tradicionalmente, um único cantor ou cantora, denominado sorícúm, apresenta uma longa história na qual interpreta – cantando, falando e gesticulando – todos os personagens.
A apresentação de uma história inteira pode durar até nove horas. Os sorícúm, em tempos antigos, visitavam os povoados da região apresentando essas narrativas cantadas, que foram sendo passadas de geração em geração sobretudo pela transmissão oral.
Há registro de 12 histórias antigas de pânssori, das quais cinco ainda costumam ser cantadas. O sorícúm geralmente explora timbres ásperos e roucos com a voz, além de sons mais agudos ou mais graves, de acordo com os personagens ou acontecimentos da história. Para dar ênfase a alguns gestos, ele também utiliza um leque. Além disso, é acompanhado por um percussionista, o goçú, que, com um tambor, ajuda a dar ritmo à narrativa e ao canto.
As histórias cantadas abordam temas relacionados à vida cotidiana e às relações sociais: valores éticos, dramas amorosos, justiça social, igualdade entre homens e mulheres ou abolição do sistema de classes, entre outros.
Cantar para o sagrado
Além de narrar histórias tradicionais, os cantos também podem fazer parte de diferentes ritos sagrados, celebrando e reverenciando a relação entre os fiéis e uma divindade em que creem. Conheça agora exemplos de cantos ligados a matrizes cristãs e africanas, sobre as quais já falamos anteriormente.
Entre os cantos cristãos mais antigos, dos quais há registro escrito, destacam-se os cantos gregorianos. Eles eram cantados em igrejas católicas na Europa medieval e ainda são entoados em algumas igrejas atualmente. Suas letras louvam o deus cristão ou remetem a passagens da Bíblia. O nome desses cantos está relacionado ao papa Gregório máguino (540-604), que coletou e publicou grande parte deles, contribuindo para sua preservação e ensino.
4. Observe a imagem. Você já ouviu algum canto gregoriano? Se sim, descreva-o para seus colegas.
O gênero musical mais antigo considerado um canto gregoriano é o cantochão. Trata-se de cantos com letras em latim, inicialmente compostos de uma única melodia e que não tinham acompanhamento instrumental, só vozes. Veja a seguir a transcrição da letra de um cantochão:
benedícamus dôminu (Abençoemos o Senhor
deo grátias Graças a Deus)
Bênet Rói. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Jorge zarrár, 1986. página 13.
Como você pôde perceber, a letra em latim é curta e reverencia o deus cristão. Porém, a música não é tão curta quanto pode parecer, pois usam-se notas bem longas para as sílabas de cada palavra. Esse e outros cantos do tipo cantochão serviram de base para o desenvolvimento de outros tipos de músicas cantadas em igrejas e mosteiros. A partir delas, os músicos desenvolveram outras melodias, mais graves ou mais agudas, para serem cantadas simultaneamente àquele canto que serviu de base e, assim, foram criando novas fórmas musicais, inclusive mais parecidas com as músicas feitas para corais atualmente.
5. Você já ouviu alguma música entoada por um coral?
Assim como os cantos cristãos, os cantos religiosos de origem africana também invocam e reverenciam entidades divinas. Esses cantos, em sua maioria transmitidos oralmente, têm sido preservados e ensinados ao longo de séculos e contribuem para manter vivas no Brasil as línguas dos povos africanos, faladas por pessoas que foram trazidas para cá e escravizadas.
Existem os cantos ligados aos cultos afro-brasileiros conhecidos como candomblé. Nesses cultos, há vários deuses, chamados orixás, que são associados a diferentes elementos da natureza e a aspectos materiais e imateriais da vida humana. Veja a seguir dois breves exemplos de letras de cantos para orixás:
araiê odê arê rê oquê
auá níssô odé loquê
ômo ofá ó cú erón
(Senhor da Humanidade nosso bom caçador
Nós o chamamos para aprendermos a caçar
Filho do arco e flecha que mata a caça)
(trecho de canto para o Orixá Oxóssi)
. olômi má olômi maa iô
olômi maiô ô nim aiába odó ô ieiê ô
aláadé ô siún siún mi iêiê ô
(Senhoras das águas doces (sem sal)
Sois a velha mãe do rio. Ó mamãe.
Oxum dona da coroa, Oxum é minha mãe)
(trecho de canto para a Orixá Oxum)
Disponível em: https://oeds.link/nOpT0x. Acesso em: 22 março 2022.
Ambos os cantos estão em iorubá, uma das línguas faladas pelos africanos que chegaram ao Brasil no período colonial. O iorubá continua sendo falado e cantado em nosso país até hoje, e se faz presente em inúmeros termos usados por comunidades afro-brasileiras e em seus cantos. Além de fazer parte da comunicação em momentos cotidianos, essas palavras em iorubá muitas vezes também são usadas para referir-se a conhecimentos específicos relacionados a plantas, artefatos, mitos, alimentos ou ritos.
No continente africano, o iorubá é falado hoje por parte da população de países como Nigéria, Benim e Serra Leoa.
Além dos cantos, outro som também é fundamental na relação com as entidades imateriais desses ritos: o do atabaque. Podemos dizer que ele tem o papel de mediar a relação com a divindade, já que é esse instrumento que, com toques específicos para cada entidade, as convoca para rituais como os da fotografia, na qual também observamos os três diferentes tipos de atabaque (rum, lê e rumpi) citados anteriormente no Foco na História.
Para pesquisar
Músicas e imaterialidade em outros sistemas musicais
O sistema que você tem conhecido, de nomeação e compreensão das propriedades sonoras e outros elementos musicais, está ligado ao modo ocidental de entendimento musical, que tem origem na Grécia e prevalece até hoje. Porém, há outros modos de compreender e perceber a música. Você já ouviu falar de algum?
Os diferentes sistemas musicais podem estar relacionados com diferentes modos de espiritualidade, tradições e outras buscas humanas para compreender e nomear o mundo imaterial.
A sugestão aqui é que você faça uma pesquisa sobre outros sistemas musicais e suas relações com a imaterialidade. Pesquise, por exemplo, sobre concepções ou sistemas musicais africanos, chineses, indianos, indígenas, egípcios ou outros. Para isso você pode consultar sites, blogs, podcasts, livros ou artigos relacionados a esses assuntos.
Faça no caderno.
PARA REFLETIR
Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
- Qual dos exemplos apresentados neste Sobrevoo mais despertou a sua curiosidade? Por quê?
- Você identifica outras relações entre música, ancestralidade e espiritualidade em práticas musicais da região onde você vive?
Foco em...
Cantos medievais e o desenvolvimento da escrita musical ocidental
Os manuscritos antigos são chamados de códices ou codex. A imagem de abertura deste capítulo e a imagem a seguir são reproduções de páginas de códices diferentes. Grande parte do que se conhece hoje sobre cantos medievais foi registrada em manuscritos desse tipo. A partir desses cantos, conforme comentado no Sobrevoo, foram se desenvolvendo outras fórmas musicais. Na Europa, junto a esse desdobramento contínuo de novas estruturas musicais, foram desenvolvidos modos de notação musical, que são fórmas de registrar e possibilitar a reprodução da música.
Durante a Idade Média, as igrejas eram grandes centros de cultura. Estava sob seu domínio a ainda pequena produção de livros, que ganhou maior impulso no século doze, com a criação das primeiras universidades. Foi nesse período que começaram a se desenvolver os procedimentos e as técnicas de escrita e fabricação de livros, que depois de muito tempo dariam origem a exemplares mais parecidos com os que temos hoje.
O aprendizado musical da época se baseava sobretudo na memória e na oralidade. Algumas das primeiras fórmas de notação musical realizadas eram traços, pontos e outros sinais feitos logo acima das letras de cantos, como os que podem ser observados na imagem.
Eles serviam para ajudar o cantor a lembrar características da melodia a ser entoada; por exemplo, se em determinada parte ela deveria ter sons mais agudos ou mais graves. Esse desenvolvimento de teoria e escrita de música estava sob responsabilidade dos monges cristãos. Foi nesse contexto que, no final do século onze, um desses monges atribuiu nomes para as notas musicais, que antes eram representadas por letras do alfabeto. Veja a letra em latim da primeira estrofe de um canto medieval para São João Batista:
út queanti lácssis
ressonáre fíbris
míra distôrum
famuli tuorum,
sôlue polúti
labii reatum,
sânquit iorrânes.
(Para que seus servos possam, com a voz,
cantar seus feitos maravilhosos, limpai as
manchas de nossos lábios sujos.
Ó São João!)
COTTA, André Guerra. Notas preliminares sobre o cantochão acompanhado na prática musical luso-brasileira dos séculos dezoito e dezenove: o Hino a São João Batista de José Maurício Nunes Garcia. Per Musi, Belo Horizonte, número 18, 2008, página 28-34. Disponível em: https://oeds.link/dgjKon. Acesso em: 13 fevereiro 2022.
Há várias gravações desse hino medieval dedicado a São João Batista disponíveis na internet. Basta procurar, em uma ferramenta de busca, pelo primeiro verso: “ út queanti lácssis”.
Faça no caderno.
1. Escute um trecho do “Hino a São João Batista”. Você consegue localizar, nessa letra em latim, os nomes das notas musicais: dó – ré – mi – fá – sol – lá – si?
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O monge italiano Guido daretzo (992-1050) utilizou as sílabas iniciais desses versos para nomear as notas. Se você reparou, a única que não está no texto é a sílaba dó. O nome dado a essa nota naquela época foi ut. Somente séculos depois essa denominação foi substituída por dó, para facilitar a pronúncia em solfejos musicaisglossário . Já a nota si foi composta das iniciais da denominação de São João em latim (Sancte Iohannes), que aparece no sétimo verso.
Foi esse mesmo monge que desenvolveu uma fórma de escrita musical usando quatro linhas para indicar as notas musicais. Uma escrita muito parecida com as partituras utilizadas hoje em dia, nas quais há cinco linhas básicas (pentagrama) e linhas suplementares acrescentadas quando necessário, para registrar sons mais graves ou mais agudos dos que os que cabem nas linhas básicas.
2. Escute uma escala de notas naturais gravada de modo ascendente (do grave para o agudo) e, em seguida, descendente (do agudo para o grave); depois, escute uma escala cromática gravada do mesmo modo. Em seguida, compartilhe suas impressões com um colega.
Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.
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Não era apenas dentro das igrejas que se cantava na era medieval. Dessa mesma época são os trovadores, que, de cidade em cidade, acompanhados por instrumentos como o alaúde, entoavam cantigas para divulgar diversos assuntos entre a população.
Faça no caderno.
PARA REFLETIR
Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
- Você considera a escrita uma fórma de registrar elementos imateriais? Ela pode ajudar no aprendizado musical? Por quê?
- A partir do momento em que temos os conteúdos escritos, será que isso pode alterar a relação com a memória e com a improvisação? Por quê?
Transcrição do áudio
Ut queant laxis
resonare fibris
famuli tuorum,
Mira gestorum
Solve polluti
labii reatum,
Sancte Iohannes
Transcrição do áudio
• Escala de notas naturais
(Instrumental) dó ré mi fá sol lá si dó
(Instrumental) dó si lá sol fá mi ré dó
Estúdio: Marcelo Pacheco
Foco no conhecimento
Tempo em música
O ritmo, em música, é o elemento ligado à organização dos sons em um intervalo de tempo. Ele se refere à maneira de lidar com a duração dos sons e com o preenchimento do tempo que transcorre com esses sons. Imagine um pequeno espaço de tempo, ele pode ser preenchido de diferentes maneiras com sons. Por exemplo, podem ser usados poucos sons, mas que tenham duração suficiente para preencher esse intervalo de tempo ou então que sejam intercalados por pausas. Ou muitos sons, porém de curta duração, o que daria a sensação de maior velocidade. Ou ainda um meio-termo entre as duas opções anteriores, alguns sons mais longos, outros mais curtos.
Veremos a seguir dois conceitos importantes dentro da maneira como o sistema musical ocidental lida com o ritmo: pulsação e compasso.
Você certamente já cantou a música "Parabéns pra você". Geralmente, quando várias pessoas cantam juntas essa música, elas também batem palmas. Isso é possível porque estão percebendo a pulsação da música. É essa pulsação que elas estão marcando quando batem palmas.
1. Você pode tentar perceber a pulsação de qualquer outra música batendo palmas para demarcá-la. Experimente!
Isso pode ser referência também para organizar ritmicamente uma música com base em grupos de uma quantidade determinada de pulsações, acentuadas sempre da mesma maneira, por exemplo: de três em três pulsações, acentuando-se sempre a primeira delas mais do que as duas seguintes. Isso é o que chamamos de compasso. As pulsações dentro de cada compasso geralmente são chamadas de tempos. Os compassos mais utilizados são: de dois tempos, chamado binário; de três tempos, ternário; e de quatro tempos, quaternário.
Você já assistiu a uma apresentação de uma orquestra ou coral? Já reparou nos gestos feitos pelo maestro? O compasso de cada música é a base para os gestos que o maestro faz ao reger, que servem, entre outras funções, para que todos toquem ou cantem a partir da mesma referência rítmica.
Para que fique mais claro o que é o compasso musical, sugerimos a seguir um exercício de escuta e percepção desses três tipos citados.
Para pesquisar
Músicas com os compassos estudados
Sugerimos que você escute os exemplos nos áudios indicados a seguir. Incluímos também algumas sugestões de músicas e gêneros musicais relacionados a cada tipo de compasso, que você pode pesquisar na internet. Depois, você também pode escolher músicas que conhece e tentar identificar em que compasso se encaixam.
Binário
Pode ser percebido em todos os tipos de samba e nos ritmos de baião, xote e marcha. Repare que, no samba, a percussão acentua com mais destaque o segundo tempo de cada compasso, demarcado geralmente por instrumentos mais graves, como o surdo e o bumbo. Vale comentar que, no caso do samba, há também a herança de sistemas musicais africanos. Sendo assim, pode-se dizer que a noção ocidental de compasso binário é apenas uma das possíveis fórmas de “compreender” a rítmica desse gênero musical.
Como exemplo de compasso binário, escute a cantiga popular “Samba Lelê”.
Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.
Sugestão para pesquisa: Canção “Argumento”, de Paulinho da Viola.
Ternário
O gênero musical em compasso ternário mais conhecido é a valsa. Nele, a acentuação feita pelos instrumentos musicais geralmente ocorre no primeiro dos três tempos de cada compasso. Outro gênero musical ternário, presente no Brasil e no Paraguai, é a guarânia. Esse tipo de compasso também pode ser observado em várias composições da música popular brasileira, em cantigas folclóricas e em músicas instrumentais brasileiras.
Tente perceber o compasso ternário na cantiga popular “Terezinha de Jesus”.
Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.
Sugestão para pesquisa: Canção “Rosa”, de Pixinguinha.
Quaternário
As músicas de rock-and-roll são em compasso quaternário. Nelas, os instrumentos de percussão geralmente acentuam os tempos dois e quatro, enquanto as finalizações de frases da melodia evidenciam o primeiro tempo.
Escute um exemplo de compasso quaternário em uma base rítmico-harmônica de rock-and-roll.
Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.
Sugestão para pesquisa: Canção “Rock and Roll”, de léd Zeppelin.
Faça no caderno.
PARA REFLETIR
Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
- Com base no que foi apresentado nesta seção, comente: como a linguagem musical ocidental lida com o tempo?
- Você se identifica com esse modo de pensar o tempo em música?
- Você conhece ou tem vontade de conhecer outros sistemas musicais?
Processos de criação
Considerando o que você conheceu na seção Foco no conhecimento, que tal escolher agora uma música e compor um arranjo para tocar e cantar?
- Reúna-se com os colegas em um grupo de até seis integrantes.
- Para realizar a atividade, vocês precisarão de instrumentos musicais ou outros objetos sonoros. Distribuam entre os grupos todos os itens que a turma conseguir disponibilizar.
- Cada grupo pesquisará e escolherá uma música (pode ser em compasso binário, ternário ou quaternário) da qual tenha um arquivo digital de áudio ou um cedê.
- Escutem juntos essa música, marcando a pulsação com as mãos e procurando perceber os tempos de cada compasso. Isso será uma referência para a composição do arranjo.
- Reparem também na acentuação dos tempos do compasso, lembrando o que foi visto na seção Foco no conhecimento.
- Determinem quais instrumentos farão as marcações de acentuação características do gênero da música escolhida.
- Escolham outros sons e instrumentos para preencher os tempos em outras partes. Definam os momentos de pausas de alguns instrumentos, as variações de intensidade etcétera Considerem todos os elementos musicais estudados nesta coleção. Assim, esse trabalho musical será ainda mais rico.
- Decidam quem tocará o quê e quem cantará. Então ensaiem e, quando ficar do jeito que vocês querem, apresentem para os outros colegas.
Faça no caderno.
PARA REFLETIR
Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
- O que você aprendeu sobre música nesta atividade?
- De que parte do arranjo do seu grupo você mais gostou? Por quê?
- Você considera que algo pode ser melhorado em algum dos arranjos apresentados? Comente.
Organizando as ideias
Neste capítulo, você conheceu um pouco sobre fórmas antigas de registro musical, refletiu sobre o significado que alguns sons podem ter em determinados locais, épocas ou culturas; estudou diversas atividades musicais envolvidas com aspectos imateriais da vida humana e aprendeu um pouco mais sobre o elemento musical ritmo. Relembre os conteúdos estudados, percebendo o que foi mais marcante para você. Então, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
Faça no caderno.
- Reveja sua resposta para a pergunta que foi feita logo no início deste capítulo: o que você identifica como material e imaterial nas práticas musicais que conhece? Algo pode ser acrescentado agora?
- O que você aprendeu de novo neste capítulo sobre o elemento imaterial da música que chamamos de ritmo?
- Depois desse estudo, e considerando outros cultos religiosos que você conheça, como diria que diferentes fórmas de espiritualidade podem se refletir em sons e músicas?
- Quais descobertas você fez ao longo deste capítulo? O que você gostaria de continuar aprofundando?
Glossário
- Solfejo musical
- Entoação de notas musicais pronunciando o nome de cada uma. Serve como exercício para o aprendizado da altura de cada nota ou de uma melodia específica.
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