CAPÍTULO 5 Tradição e aprendizado

Fotografia. Em primeiro plano, ao centro, uma mulher de meia idade, usando saia rodada e florida comprida, bata de renda branca, colares no pescoço e um turbante na cabeça está de pé com os olhos fechados e os braços flexionados para a frente, com a boca aberta. Ela parece dançar e cantar e segura um pedaço de madeira em cada  mão. Atrás dela, outras mulheres usam roupas semelhantes. Algumas batem palmas. Todas estão em uma rua de pedra. Ao fundo, construção de parede branca e janelas cinza.
Dona Dalva (à frente) com as mulheres do grupo Samba de Roda zuér diec, em Cachoeira (Bahia). Fotografia de 2004.
Ícone. Tema contemporâneo transversal: Cidadania e Civismo.

Observe a imagem das mulheres do grupo Samba de Roda zuér diec, em Cachoeira (Bahia). À frente, Dona Dalva (1927-), fundadora do grupo e mestra que ensina e mantém a tradição viva. Note que as mulheres são de diferentes gerações.

1. Você consegue imaginar por que essa dança pode interessar tanto a mulheres jovens quanto a mulheres idosas?

Neste capítulo, você vai conhecer danças cujas propostas nos ajudam a sentir no presente conhecimentos que nos ligam ao passado.

Um saber tradicional pode ser compreendido como algo cujo aprendizado faz parte da vida e da memória de um grupo.

O samba de roda é um exemplo de saber tradicional. Para aprender a dançá-lo, é preciso entrar na roda. Quando um movimento feito pela mestra sambadeira é repetido por um aprendiz na roda, uma conexão se cria entre as pessoas que dançam e entre os diferentes momentos e contextos em que esse movimento é realizado. Essa conexão faz com que o movimento adquira valores e ideias diferentes e, desse jeito, o passado se atualiza no presente.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. No seu dia a dia, o que você aprende com pessoas de outras gerações? Como?
  2. Você identifica na sua vida exemplos de saberes tradicionais (nas festividades natalinas ou juninas, por exemplo)? Que saberes são esses e como você os aprendeu?
  3. O que você conhece sobre danças que fazem parte das tradições de sua família, cidade ou região?

SOBREVOO

Tradição e transformação

Desde a sua criação, o samba se espalhou pelo Brasil e cada região desenvolveu alguma especificidade. No Sudeste, o uso do bumbo (tambor de som grave) é a característica principal e o que o diferencia do samba de outras partes do país. Foi nessa região, após a abolição da escravatura e com o crescimento da população nos centros urbanos, que os cordões, grupos tradicionalmente ­reunidos em torno do samba, foram fundados. Esses grupos foram os precursores das escolas de samba, que só foram oficializadas em 1968, de acordo com o modelo carnavalesco carioca, estabelecendo regras gerais para os desfiles de Carnaval, como a organização das alas.

O coreógrafo paulista Luis Ferron (1963-) criou o trabalho Sapatos brancos (2009), motivado por saber mais sobre as tradições do samba. Com base em sua experiência como mestre-sala, o artista tomou como referência a dança da dupla responsável por apresentar o estandarte da escola de samba e cuidar dele em todas as apresentações e desfiles, com o objetivo de investigar como nasce a dança do mestre-sala e da porta-bandeira.

Faça no caderno.

1. O que você conhece sobre a dança do mestre-sala e da porta-bandeira?

Luis Ferron iniciou a pesquisa para a criação do espetáculo com base nas próprias lembranças e experiências assim como nas do elenco, que conta com mestres-salas, porta-bandeiras, passistas, ritmistas e bailarinos. Com isso, os ensinamentos aprendidos nas escolas de samba, transmitidos de geração em geração, tornaram-se o material de trabalho do grupo. A busca por conhecer a origem da dança do mestre-sala e da porta-bandeira, com suas regras gestuais inspiradas nas posturas das cortes europeias, com imitações irônicas de suas normas de etiqueta, levou-o a conhecer outras tradições e costumes que, combinados, formam hoje a festa do Carnaval em São Paulo. Assim, com música ao vivo, a coreografia de Sapatos brancos apresenta a história do samba paulista, que inclui movimentações do samba de lenço, da gingaglossário da capoeira e das reverências ao estandarte e aos instrumentos.

Na cena, elementos de diversas épocas e diferentes culturas se sobrepõem: os confetes e as serpentinas, a máscara de plástico, ou o vestido e a peruca que lembram as vestimentas de cortes europeias do século dezessete.

2. Observe esta imagem. Você já tinha assistido a uma dança semelhante? Como ela poderia ser descrita?

Fotografia. Espetáculo de dança. Mulher negra usa vestido branco rodado. Ela está em um giro com os braços abertos e sorri. Ao lado dela, um homem usa camisa branca e calça escura. Ele está com a perna direita flexionada com o pé para trás e o braço direito estendido na direção da mulher. Ao fundo luz laranja entre os dois.
SAPATOS brancos. Direção e concepção: Luis Ferron. Interpretação: Zélia Oliveira, Mestre Ednei Mariano e Núcleo Luis Ferron. São Paulo (São Paulo), 2013.

Os gestos de reverência e de condução nessa dança, como você pode ver na imagem, foram criados com base em diversas experiências em ritos, festejos, capoeiras e batuquesglossário . Sapatos brancos desloca a prática de mestres e demais integrantes do samba paulistano para o palco e, com isso, a transmite ao público que assiste às apresentações.

Para experimentar

Siga o mestre (um)

  Que tal fazer uma reflexão sobre o aprendizado dos movimentos por meio da linguagem da dança?

  1. Formem uma roda com oito integrantes. Vocês devem falar apenas após o término do trabalho; por enquanto, tudo terá de ser resolvido pela observação.
  2. Na roda, uma pessoa faz um movimento e o repete quatro vezes. Os outros colegas apenas observam para, depois, repetir o movimento oito vezes. Imediatamente ao término da oitava repetição, a segunda pessoa da roda faz o primeiro movimento e acrescenta outro de sua autoria; ela mostra essa sequência quatro vezes e os colegas repetem oito vezes a sequência de dois movimentos. Logo em seguida, a terceira pessoa inicia o processo e assim o jogo segue até chegar à oitava pessoa da roda. É necessário que todos os integrantes do grupo memorizem a sequência final, pois as sequências serão utilizadas em todas as propostas de experimentação sugeridas ao longo deste capítulo.
  3. Faça uma reflexão com o professor e os colegas.
    1. Quando você faz um movimento criado por um colega, você repete o mesmo movimento ou pode haver diferenças nessa repetição? Quais?
    2. Você encontrou dificuldades em fazer a sequência final? Quais foram e o que você pode fazer para resolvê-las?

Memórias da tradição

Conforme visto no exemplo anterior, de Luis Ferron, a dança de uma tradição pode ser o mote para um trabalho coreográfico que mobiliza a memória da vida do coreógrafo e é base para a recriação das suas tradições e experiências pessoais. E isso é o que acontece com o espetáculo que você vai conhecer agora.

O bailarino e coreógrafo afro-americano álvin êili (1931-1989) estudou dança com léster órtôn (1906-1953) e com marta greém (1894-1991), artistas conhecidos por fundar a chamada dança moderna e que você verá mais adiante. êili foi influenciado por artistas que produziam suas obras com base em matrizes africanas, como quéterine dúnrram(1909-2006).

Até meados do século vinte, nos Estados Unidos, descendentes de africanos escravizados eram proibidos de se reunir para cultuar seus deuses e ancestrais, como faziam em seus locais de origem. Essa proibição, junto com a violência da escravidão, levou-os a recriar suas tradições. Cantigas de roda e danças são exemplos de tradições sobreviventes.

Fotografia. Espetáculo de dança. À esquerda, um homem sem camisa e calças brancas. Ele está de perfil, com as mãos juntas na frente do corpo. Ao lado, um homem com roupas brancas segura um bastão longo para cima. No centro, três mulheres com vestidos brancos e longo. Duas delas estão com as mãos juntas na frente do corpo e a outra segura  um guarda-chuva com a mão direita. À direita, um homem usa roupas brancas e segura com as mãos dois tecidos brancos com os braços estendidos para cima e para frente. Eles estão de perfil,  sobre um palco  espelhado, e olham para a plateia.
REVELAÇÕES. Segunda parte: Take me to the water [Levem­‑me para a água, em tradução livre]. Coreografia: álvin êili. Interpretação: Alvin Ailey American Dance Theatre. Miami, Estados Unidos, 2011.

3. Você conhece alguma dança tradicional que recorre a elementos parecidos com os utilizados pelos bailarinos nessa imagem? Qual é a dança?

álvin êili se impregnou da cultura negra à qual pertencia e, com base em experiências pessoais, concebeu a coreografia Revelações (1960). O trabalho é dividido em três partes. A primeira é Pilgrim of sorrow [Peregrino da tristeza], que trata da tristeza de africanos escravizados e seus descendentes. Os figurinos têm tons marrons e os bailarinos dançam muito próximos uns dos outros. A segunda parte é Take me to the water [Levem-me para a água], na qual êili relembra seu batismo, que aconteceu em um lago; nessa parte, o elenco usa roupas brancas e elegantes. Na terceira parte, Move, members, move [Mexam-se, membros, mexam-se], o coreógrafo apresenta o que acontecia aos domingos na igreja que ele frequentava com sua mãe quando criança, na década de 1930.

Fotografia. Espetáculo de dança. Sete dançarinas usando vestido e chapéu com renda amarelos. Uma delas está no centro, com os olhos fechados e o braço direito à frente do corpo, na altura do peito. Ao seu lado, de pé outras quatro mulheres com as mãos na cintura se inclinam na direção dela. Duas outras dançarinas  estão ajoelhadas e com as mãos na cintura. Todas olham para a mulher do cento.
REVELAÇÕES. Terceira parte: Move, members, move [Mexam­‑se, membros, mexam­‑se, em tradução livre]. Coreografia: álvin êili. Interpretação: Alvin Ailey American Dance Theatre. Nova York, Estados Unidos, 2012.

4. Observe a imagem. Repare na postura dos bailarinos, nos figurinos e nos objetos de cena. Que ambiente você imagina pela observação desses elementos? O que essa dança pode retratar?

Contemporâneo de álvin êili, cláidi mórgan (1940-) é um bailarino, coreógrafo e professor nascido em Ohio, nos Estados Unidos. Em sua trajetória, dançou na companhia de dança moderna de José Limón (1908-1972) até viajar pelo continente africano e conhecer a cultura e os rituais de diferentes países. Ele também se interessou pelo Brasil e aqui foi iniciado no candomblé, na cidade de Salvador (Bahia). Em sua história com as danças brasileiras de matriz africana, ele aprendeu com mestres populares e com a vivência na comunidade onde foi iniciado, antes de coreografar Porque Oxalá usa ecódide (1973).

Fotografia em preto e branco. Espetáculo. Mulheres usam lenço na cabeça e vestido brancos. À direita, uma pessoa está com o rosto coberto por palha. Ao centro uma pessoa segura um cetro de metal.
PORQUE Oxalá usa ecódide. Direção: cláidi mórgan e estudantes da úfiba. Bahia, 1975. cláidi mórgan está ao centro, na figura de Oxalá.

5. Observe a imagem. Que elementos você reconhece nos figurinos e na indumentária utilizados pelos intérpretes?

Os elementos dessa coreografia têm origem nos rituais afro-brasileiros, e a dança encena o conto mítico transmitido entre gerações e registrado pelo artista plástico e escritor Mestre Didi (1917-2013), que leva o mesmo título do espetáculo.

cláidi mórgan, em Porque Oxalá usa ecódide, escolheu o palco arena para que o público pudesse ficar ao redor da cena. A cenografia lembra a ambientação de uma festa sagrada, com bandeirolas de papel branco presas em barbantes pelo teto e a música percussiva tocada ao vivo.

Os personagens do espetáculo remetem às entidades mitológicas cultuadas nas religiões de matriz africana no Brasil. Os movimentos que compõem as coreografias misturam elementos de dança moderna estadunidense, do balé e das danças rituais afro-brasileiras.

Nesse trabalho, Clyde Morgan explora tanto as tradições de dança que estudou em seu país como as danças aprendidas em ritos no Brasil e em países da África, e consegue recriar a narrativa de um conto por meio da dança, mantendo a simbologia da cultura afro-brasileira e promovendo encontros entre os saberes de dança elaborados em aprendizados em continentes e tempos diferentes.

Foco na História

Danças africanas e a dança moderna

A dança moderna foi um movimento artístico que teve seu auge no século vinte. Artistas da Europa e dos Estados Unidos buscavam um modo de expressar a natureza humana por meio da dança. Muitos estudaram culturas do Oriente, mitologias grega e hindu e práticas meditativas em busca de movimentos que dessem vazão a fórmas de expressão diferentes das tradicionais nos seus locais de origem. Com base nesses estudos, muitos artistas criaram as próprias rotinas de treinamento e composição sistematizadas, com filosofia e princípios de movimentos diferentes entre si.

Nesse contexto, a bailarina e antropóloga estadunidense quéterine dúnrram (1909-2006) iniciou sua formação em dança. Ela começou estudando balé e dança criativa, antes de se voltar para a pesquisa das danças caribenhas, afro-latinas e africanas, que constituem as bases da sistematização de seu trabalho. Essas três modalidades de dança são expressões vivas da memória e da cultura de povos que se espalharam por diferentes regiões da América e da Europa durante o processo de expansão de nações europeias iniciado no século quinze, e que culminou na colonização do chamado Novo Mundo, sustentada pela mão de obra escravizada.

Fotografia em preto e branco. Uma mulher  usa roupa estampada e colares no pescoço parece dançar. Atrás dela, um homem usa um lenço na cabeça e uma bata estampada. Ao fundo, várias mulheres usam turbante nos cabelos e roupas estampadas. Eles sorriem olhando na direção da mulher da frente.
quéterine dúnrram dançando em um vilarejo da Nigéria durante uma viagem pelo continente africano. Fotografia de 1962.

A dança moderna de quéterine dúnrram, de matriz africana, tem elementos em comum com a jazz dance, praticada nos Estados Unidos desde o século dezenove e cuja base são danças elaboradas pelos afro-americanos descendentes dos povos escravizados para trabalhar nas grandes plantações de algodão.

Os trabalhos de quéterine dúnrram, álvin êili, Clyde Morgan e inaicíra Falcão dos Santos contribuíram para o reconhecimento público e coletivo de culturas cujas manifestações foram proibidas por lei durante séculos na América Latina e nos Estados Unidos. As modalidades de dança estudadas por eles influenciaram artistas da dança que trabalharam no mesmo período, valorizando o legado de povos cujos conhecimentos sobreviveram a uma história de violência e opressão.

No Brasil, o trabalho de Dunham influenciou artistas como a campista Mercedes Batista (1921-2014) e o baiano Eusébio Lobo da Silva (1952-), que estudaram e trabalharam com ela. Mercedes Batista foi precursora da elaboração de uma rotina de treinamento para dança afro-brasileira. Ela, Mestre Quíngui (1943-2018) e outros profissionais contribuíram para a difusão e o aprofundamento da cultura e da dança de matriz africana no Brasil, influenciando gerações de artistas.

Clique no play e acompanhe as informações do vídeo.

Ginga para além da roda

Além das danças afro-brasileiras apresentadas neste Sobrevoo, a capoeira também compõe a cultura de matriz africana no Brasil. Conhecida como dança, música, jogo e luta, em sua origem ela era praticada por pessoas escravizadas ou que tinham sido escravizadas durante o período colonial. Sua prática, taxada como vadiagem, foi criminalizada até a metade do século vinte. Mesmo sob risco de perseguição e punição, seus praticantes mantiveram viva a sua tradição, reunindo-se em roda, tocando instrumentos, cantigas, toques em ritmos específicos e executando a ginga. No início do século vinte, as rodas de capoeira eram formadas por trabalhadores rurais, estivadores e artesãos, em regiões portuárias dos estados da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro.

Assim como no samba de roda, só se aprende capoeira entrando na roda. As rodas são compostas de praticantes de diversas idades, que aprendem e ensinam coletivamente golpes, cantigas (chamadas de corridos), toques e ritmos. Com a prática, um aprendiz pode vir a se tornar mestre. A capoeira é hoje reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, e o ofício de mestre de capoeira faz parte desse patrimônio: o valor de seu conhecimento é reconhecido e seu trabalho, assegurado por lei.

Em uma roda, todos os participantes reverenciam a memória de seus mestres e ancestrais, pelos corridos e toques; dessa fórma, se mantém a conexão com o passado no momento presente do jogo.

Fotografia. Em primeiro plano,  um homem de roupas brancas, chapéu e tênis está com as mãos e os pés no chão e o tronco elevado, jogando capoeira. Ao lado dele, um menino de camiseta branca e calça preta está de ponta-cabeça com as mãos no chão e as pernas dobradas ao ar. Atrás, dois homens tocam berimbaus e ao lado deles, outros dois homens tocam tambores. Todos estão em uma calçada. Ao fundo, árvores e casas.
Roda de Capoeira Angola na Ilha de Mar Grande, em Vera Cruz (Bahia). Fotografia de 2019.

6. O que você pode observar nestas imagens?

Fotografia em preto e branco. À esquerda, uma mulher de touca de crochê, camiseta e saia está agachada e inclinada para a frente com o peito próximo aos joelhos e os braços abertos. À frente dela, outra mulher, com camiseta e calça estampada, está agachada, inclinada para a esquerda, com a mão esquerda no chão e o braço direito atravessado diante da própria testa. Ao fundo, uma roda formada por  diversas pessoas que observam as mulheres.
Mulheres jogando capoeira em Salvador (Bahia). Fotografia de 2015.
Fotografia em preto e branco. Em primeiro plano, à esquerda, dois homens frente a frente . Eles usam calça e camisa  claras e gorro. Ambos estão de perfil e agachados em um chão de terra.  Em segundo plano, à esquerda,  três homens usam roupas claras e seguram nas mãos um berimbau cada um. à direita, outros  dois homens com roupas claras e boné seguram um pandeiro cada um. Ao fundo, parede de casa de pau a pique.
Homens em roda de capoeira em Salvador (Bahia). Fotografia de Pierre vergê, década de 1940.

As leis e os modos de vida no Brasil evoluíram bastante desde o aparecimento da capoeira em registros oficiais no século dezenove e tiveram influência nas mudanças da capoeira ao longo do tempo. Isso se reflete na presença crescente de mulheres nas rodas (retratada na imagem anterior), algo raro e incomum até pouco tempo, segundo os registros históricos. As transformações no país e a persistência de mestres, aprendizes e praticantes na hora de transmitir conhecimentos e saberes de geração em geração fizeram da capoeira uma tradição que conquistou maior espaço na sociedade. Além de ser praticada livremente hoje em dia, ela é difundida nacional e internacionalmente.

Para experimentar

Siga o mestre (dois)

Você viu no Sobrevoo como as danças tradicionais se transformam, ou evoluem, com o passar do tempo. E são muitos os elementos que influenciam as transformações, como mudanças nos hábitos cotidianos, nos instrumentos de trabalho ou nos meios de transporte, entre outros. Essas mudanças influenciam também a velocidade com que alguma coisa se realiza e a variação da duração de um evento, por exemplo.

Relembre a sequência criada em grupo na prática anterior. Você vai fazer agora a sua sequência inicial alterando a velocidade dos movimentos. O seu parceiro o seguirá como se fosse um reflexo no espelho.

Siga as orientações do professor para a organização da improvisação.

1 Em duplas, escolham quem começa o jogo sendo o mestre e quem segue sendo o aprendiz.

2 Siga na sua função até que o professor dê o sinal para trocar.

3 O mestre começa a fazer a sequência e dança variando a velocidade dos movimentos, acelerando ou desacelerando, fazendo tudo constantemente de fórma lenta ou rápida, e pausando quando e durante o tempo que quiser.

4 O aprendiz deve seguir tudo o que o mestre faz, ao mesmo tempo, como se fosse o reflexo do espelho do mestre.

5 Quando ouvirem o sinal combinado, troquem de função sem parar nem trocar de lugar.

6 Para concluir, converse com os colegas e com o professor sobre as seguintes questões.

  1. Ao ser mestre, como você se organizou para que seu aprendiz o acompanhasse?
  2. Ao ser aprendiz, como você se organizou para acompanhar o mestre?
  3. Quais foram os desafios que você vivenciou nesta atividade? Como lidou com eles?
  4. Ao assistir às outras duplas, quais mudanças você percebeu com relação à primeira sequência?

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

1 Quando você aprende a fazer um movimento, vai fazê-lo do mesmo jeito sempre ou vai modificá-lo? Por quê?

2 Pelo que você viu neste Sobrevoo, o que diferencia um mestre de um aprendiz?

Foco em...

Capoeira

As variações que ocorrem ao longo do tempo podem transformar uma mesma prática em sínteses distintas, como foi o caso da capoeira. Dois estilos de jogo de capoeira ficaram muito conhecidos: a Angola, popularizada por Mestre Pastinha (1889-1981), e a Regional, criada por Mestre Bimba (1899-1974) na década de 1920, na cidade de Salvador (Bahia).

Fotografia. Pessoas com roupas brancas jogam capoeira. Em primeiro plano, uma pessoa está com a mão esquerda no chão e as pernas no ar. Ao lado, um homem com faixa azul na cintura está com as duas mãos no chão e as pernas no ar. Atrás, um homem bate palma. À esquerda dele, sequência de um homem com pandeiro nas mãos, uma mulher com um berimbau nas mãos, outro homem com pandeiro nas mãos e outro homem batendo palma. Ao fundo, vegetação.
Roda de capoeira com lutadores e tocadores, em Salvador (Bahia). Fotografia de 2019.
Fotografia em preto e branco. À esquerda, um homem usa camiseta branca e calça listrada e está agachado, de perfil, com o braço direito estendido para a frente, apontando o dedo indicador. Ao lado, um grupo de homens segura instrumentos musicais - berimbau, tambor e pandeiro. Alguns estão em pé e outros, sentados. Atrás, um grupo de homens, adolescentes e meninos observa a cena; alguns em pé, apoiados com os cotovelos em uma barra de madeira, outros sentados em banco de madeira. Ao fundo, árvores.
Mestre Pastinha (primeiro à esquerda, abaixado) dando instruções a seus aprendizes. Fotografia de Pierre vergê. Salvador (Bahia), década de 1950.

Os estilos apresentam características diferentes de movimentos, de toques, de instrumentos e de modos de ensinar. Contudo, ambos os mestres eram baianos e contemporâneos e, apesar de estilos de jogo diferentes, tinham a mesma preocupação: levar a capoeira a ser reconhecida como manifestação imaterial legítima e representativa de uma cultura, para que seus praticantes pudessem jogar sem ser criminalizados.

Para Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, a capoeira Angola é um conjunto de saberes que se aprende ao longo da vida, na roda e fóra dela, que envolve destreza física e rítmica e aspectos filosóficos que o aprendiz deve desenvolver individualmente. Como mestre, ele preservou a tradição que aprendeu quando jovem com um mestre africano. Na pedagogia antiga da capoeira, nem tudo é possível verbalizar; é preciso se mover, respirar junto, dar as mãos para o mestre para entrar na roda. Pastinha transmitiu seu legado a muitos capoeiristas, além de registrar por escrito a sua filosofia para que os ensinamentos pudessem ser transmitidos às gerações seguintes.

Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, igualmente preocupado com a continuidade do que tinha aprendido, criou, na década de 1920, o estilo da capoeira Regional, acrescentando movimentos de uma luta chamada batuque aos movimentos da capoeira. Ele pretendia ressaltar o caráter de luta da capoeira e para isso criou um método de graduação com diversas etapas até chegar à formatura.

Para ensinar a ginga aos seus aprendizes, ele começava pegando-os pelas mãos. De mãos dadas, ensinava o movimento das pernas da ginga e, depois, a movimentação dos braços.

Fotografia em preto e branco de um homem negro, idoso e calvo. Ele veste camiseta branca e está sentado, com um berimbau na mão direita e um caxixi na mão esquerda.
Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, criador da capoeira Regional, em Salvador (Bahia). Fotografia de data desconhecida.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre a seguinte questão e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

1. Você tem mestres na sua vida como os mestres da capoeira? O que eles ensinam?

Para pesquisar

Aprendendo com os mestres

Você vai pesquisar agora uma dança entrevistando um mestre que ensina sua tradição de geração em geração. Observe a moça na roda de samba. Repare na postura do corpo dela e na postura das outras que estão na roda.

Fotografia. Apresentação ao ar livre. Uma mulher com cabelos presos, camiseta branca e saia florida, no comprimento dos joelhos, está no centro de uma roda formada por cinco mulheres e seis homens. Ela dança, com a saia em movimento. As mulheres vestem camiseta branca e saia com estampa florida, estão em pé e de frente. Os homens estão sentados, de costas, vestem camisas com estampas floridas e usam chapéus estilo panamá.
Apresentação do grupo samba de roda Filhos da Terra em Terra Nova (Bahia), 2019.

1 Reúna-se com os colegas em um grupo de seis integrantes e, com a ajuda do professor, conversem sobre danças cujos ensinamentos são transmitidos e mantidos de geração em geração. Nessa conversa, escolham uma dança para ser pesquisada e o motivo de pesquisá-la.

2 Organizem uma entrevista.

  1. Com a ajuda e companhia de um adulto responsável, entrem em contato com o mestre dessa dança e solicitem uma entrevista.
  2. Peçam autorização para gravar o encontro com um dispositivo de áudio ou vídeo.
  3. Organizem um roteiro de entrevista, com perguntas como estas:

Como você se chama e qual é a sua idade?

Como entrou para essa tradição de dança e se tornou mestre?

Quais foram seus mestres? Como ensinavam?

Como a pessoa ensina seus aprendizes atualmente?

Quais foram as principais mudanças nessa tradição desde que nasceu até hoje?

Quais as possíveis causas dessas mudanças?

     d. Comentem com o entrevistado seu interesse em obter mais informações sobre essa dança e, se possível, peçam a ele que ensine a vocês os movimentos iniciais.

3 Sigam a orientação do professor para organizar o registro da entrevista e apresentá-la na data combinada.

4 Após a apresentação de todos os trabalhos, converse com os colegas e com o professor sobre as seguintes questões.

  1. Qual foi o principal ensinamento desse mestre para você?
  2. Qual é a principal diferença entre aprender na escola e aprender com pessoas mais velhas em outros lugares?
  3. Por que as pessoas entrevistadas são chamadas de mestre?

5 Escute o áudio Pés no ritmo do samba. Depois de realizar essa prática, faça uma reflexão sobre os conteúdos ensinados pelos mestres e sobre o que você pode experimentar com essa proposta. Esse áudio será uma boa introdução para a seção Foco no conhecimento a seguir. Boa prática!

Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.

Transcrição do áudio

[Locutora] Nesta proposta, vamos explorar os apoios dos pés. Comece em pé, parado. Preste atenção se os pés, o quadril e a cabeça estão alinhados. Perceba se você pende para trás ou para a frente. Se sente o apoio mais nos dedos dos pés ou no calcanhar. Se sente que seus pés estão virados para dentro ou para fora. Evite corrigir qualquer coisa neste momento. Apenas preste atenção em como você está. Vamos começar a caminhar. Preste atenção em como você toca o pé no chão. Caminhe agora pisando apenas com o calcanhar. [pausa] Caminhe pisando com a parte de fora dos pés. [pausa] Caminhe pisando com a borda interna dos pés. [pausa] Caminhe andando com a ponta do pé. [pausa] Agora vamos experimentar caminhar com um apoio diferente em cada pé. Com o direito, pise com a borda interna e com o esquerdo, com o calcanhar. Direito ponta do pé. Esquerdo calcanhar. Direito borda interna. Esquerdo ponta do pé. Experimente as mudanças de apoio. [pausa] Agora, vamos fazer a cada passo uma mudança de apoio, começando com o pé direito. Escolha um apoio diferente para cada pé. Vamos lá? Mudando o apoio 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8. Continue mudando 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8. [pausa] Enquanto você muda os apoios, perceba que estamos entrando em um ritmo com esta exploração. Brinque de acelerar e desacelerar o movimento mantendo o ritmo. 1, 2, 1, 2, 1..., 2..., 1..., 2..., 1, 2, 1, 2. Após este áudio, peça ao professor que toque um samba de roda, para que a turma experimente o ritmo do samba com a exploração dos apoios dos pés.

O áudio inserido neste conteúdo é da Freesound.

Foco no conhecimento

O ritmo na dança

Agora convidamos você a olhar para as maneiras como o tempo influi no seu movimento pelo ritmo.

O tempo é imaterial e você pode percebê-lo no seu corpo, reparando no crescimento do cabelo e das unhas, em marcas na pele ou nas batidas do coração, que acelera e desacelera, alterando também a duração da inspiração e da expiração, quando está em repouso ou em movimento. Além disso, é possível medir a passagem do tempo por meio de instrumentos como o relógio e o metrônomo, que é um instrumento utilizado pelos músicos para estabelecer os andamentos musicais.

Faça no caderno.

1. Ao ouvir as batidas do seu coração, você percebe que existe um acento forte e um mais fraco nesse movimento? Percebe que esses acentos forte e fraco parecem movimento e pausa?

Versão adaptada acessível

1. Ao sentir as batidas do seu coração, você percebe que existe um acento forte e um mais fraco nesse movimento? Percebe que esses acentos forte e fraco parecem movimento e pausa?

Estamos falando de movimento e interrupção de movimento, percebidos em razão da repetição e da continuidade com que acontecem. Chamamos isso de ritmo, um conceito sobre música que você já conheceu no capítulo 3 deste livro. Agora você vai conhecê-lo com a dança: o ritmo, o tempo no corpo.

Conheça a seguir dois modos de perceber o ritmo:

  • Ritmo não métrico: executado segundo as batidas do coração, o fluir do sangue ou a respiração, por exemplo; segue uma manifestação biológica vital.
  • Ritmo métrico: executado segundo uma unidade de medida é contado e quantificado, como as horas, os minutos, os segundos e as rítmicas musicais.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Ao estudar os ritmos não métrico e métrico, quais dificuldades você encontrou? Por quê?
  2. Ao experimentar os ritmos não métrico e métrico, você percebeu diferenças nos movimentos realizados? Quais?

Processos de criação

Convidamos você e seu grupo a experimentar dançar a sequência coreografada na primeira atividade do capítulo com ritmos diversos. Após conhecer algumas possibilidades, vocês estudarão uma delas para apresentar à turma. Para isso, vamos dividir o processo de criação em duas etapas.

  1. Primeira etapa: improvisação individual Retome a sequência coreográfica que vem sendo trabalhada ao longo das atividades deste capítulo; ela será sua base.
    1. Improvise sua sequência conforme o ritmo das músicas. Isso modificará o modo como você faz sua sequência inicial e, com base nessa experimentação, você poderá acrescentar alguns novos movimentos.
    2. Quando as músicas cessarem, será o momento de improvisar seguindo os ritmos da respiração, da circulação do sangue e das batidas do coração. Siga nessa improvisação até que o professor dê a indicação para pausar.
  2. Segunda etapa: criação coreográfica em grupo
    1. Reúna-se com os colegas e conversem sobre qual das possibilidades de lidar com o tempo mais interessou a vocês e por quê.
    2. Com base nessa conversa, modifiquem a sequência inicial utilizando o ritmo não métrico ou o métrico para que todos os integrantes do grupo dancem juntos.
    3. Com a ajuda do professor, organizem o ensaio para apresentar o trabalho final para a turma.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe as suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Quais foram as influências dos ritmos não métrico e métrico na criação final do seu grupo?
  2. Quais foram as transformações da sequência inicial que você fez na segunda etapa desse trabalho?

Organizando as ideias

Recorte de quatro imagens, da esquerda para a direita: Imagem 1: detalhe de fotografia. Uma mulher de meia idade, usando saia rodada e florida comprida, bata de renda branca, colares no pescoço e um turbante na cabeça está de pé com os olhos fechados e com os braços flexionados para a frente, com a boca aberta. Atrás, outras mulheres usam roupas semelhantes. Imagem 2: detalhe de fotografia de espetáculo. Uma mulher de vestido branco longo segura para cima um guarda-chuva com a mão direita. O braço esquerdo está semiflexionado para cima e a cabeça inclinada para o alto. Ela está dançando em um palco. Imagem 3: detalhe de fotografia de espetáculo. Uma mulher usando vestido e chapéu com renda amarelos. Ela está dançando com os olhos fechados e o braço direito à frente do corpo, na altura do peito. Ao redor dela, outras mulheres com o mesmo figurino. Imagem 4: detalhe de fotografia. Um menino de camiseta branca e calça preta está de ponta-cabeça com as mãos no chão e as pernas dobradas ao ar. Atrás dele, homens tocam berimbaus e tambor. Todos estão em uma calçada. Ao fundo, árvores e casas.

Neste capítulo, apresentamos danças de tradição e danças cênicas que, na sua criação, envolvem a herança cultural e a memória dos aprendizados da ancestralidade. Você viu também como a transmissão desses conhecimentos transforma e atualiza esses aprendizados na experiência cotidiana.

Para concluir, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

Faça no caderno.

  1. O que você aprendeu sobre as tradições?
  2. O que você aprendeu sobre os mestres?
  3. O que você aprendeu sobre o tempo?
  4. Quais são suas reflexões sobre aprender e ensinar ao finalizar as leituras e atividades deste capítulo?
  5. Quais descobertas você fez ao longo deste capítulo? O que gostaria de continuar aprofundando?

Glossário

Ginga
Balanço ou bamboleio do corpo para os lados. Para a capoeira, a ginga é o movimento base por intermédio do qual todos os outros são desenvolvidos. Gingar possibilita a quem joga capoeira estar sempre em movimento, atento. O termo gingar também é usado como metáfora para situações da vida cotidiana nas quais você precisa estar atento, pronto para se esquivar de problemas, ou em situações de risco, como no jogo na roda de capoeira.
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Batuque
Nome dado pelos portugueses a diferentes danças originárias do Congo e de Angola. A palavra pode ser uma versão deturpada da expressão, de origem quimbundo, bu-atuka (“onde se salta ou se pinoteia”). Também se refere a um jogo ou luta que acontecia com o toque dos tambores. No Rio de Janeiro, o jogo era chamado de batucada, ou pernada carioca, e, em São Paulo, de tiririca, capoeira ou pernada.
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