CAPÍTULO 6 Oralidade, memória e invenção

Fotografia. Atores com os rostos pintados  de branco, sobrancelhas pretas,  batom vermelho e barba vestem indumentárias em tecido vermelho, coletes e cintos de tecido em amarelo e vermelho amarrados na altura do peito, formando nós na cintura, e chapéus vermelhos redondos. Cada um deles segura na mão direita uma lança em tons de amarelo e vermelho e parecem marchar.
agamênon. Dramaturgia: Ésquilo. Interpretação: Théâtre du Soleil. Paris, França, 1990.

1. Tente se lembrar de alguém que você conhece e que conta histórias de uma fórma cativante. Como essa pessoa conta histórias? Quais recursos ela utiliza para tornar essas histórias mais interessantes?

Observe a imagem da abertura do capítulo. Os artistas do Théâtre du Soleil se propuseram a recontar o mito grego da família dos Atridas e encenaram uma série de espetáculos que apresentavam a história de seus personagens. A arte do teatro possibilita que narrativas criadas ou vividas há milhares de anos continuem sendo transmitidas, como nesse caso.

O hábito de contar histórias também contribui para solucionar problemas: a partilha de narrativas pode ajudar a dar e receber conselhos. Ao mesmo tempo, sabemos que, dentro de uma história, podem existir muitas outras, pois as recriamos infinitamente. Nesse sentido, a oralidade nos ajuda a entrar em contato com nossa memória e criatividade para solucionar problemas, compartilhando experiências e inventando novas possibilidades.

Neste capítulo, você vai adentrar em um vasto campo de palavras e narrativas e estudar algumas fórmas de compartilhar histórias por meio da arte teatral.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Qual é a importância de compartilhar histórias na sua vida?
  2. Quais tipos de história você tem mais prazer em contar?
  3. Quais tipos de história você tem mais prazer em escutar?
  4. Quais as histórias mais marcantes que você já escutou? Registre algumas delas em seu diário de bordo.
Versão adaptada acessível

3. Por quais tipos de história você se interessa mais?

Versão adaptada acessível

4. Quais as histórias mais marcantes de que você se lembra? Registre algumas delas em seu diário de bordo.

SOBREVOO

O teatro é povoado de histórias

Fotografia. Apresentação teatral. À esquerda, uma mulher sentada no chão usa um lenço na cabeça estilo turbante, um vestido largo, de mangas compridas e por cima dele um colete azul. Tem o rosto pintado de branco e usa lenço azul no pescoço. Ela tem um atabaque no colo, apoiado na horizontal sobre sua coxa esquerda e segurado com sua mão direita. A mão esquerda está em movimento de tocar o instrumento. No centro, um homem com rosto pintado de branco veste camisa amarela, colete marrom e lenço azul no pescoço. Ele está sentado, sorri e segura uma baqueta com a mão direita; à direita e à frente dele há instrumentos de percussão. Ao lado, uma mulher com lenço cor de laranja na cabeça, vestido longo em tons pastéis e echarpe laranja e bege no pescoço. Ela está com o rosto pintado, sorri e segura uma baqueta em cada mão. À direita, um homem com barba e o rosto pintado de branco veste casaco marrom e calça bege com franja na barra. Ele está com o joelho esquerdo apoiado no chão e o joelho direito elevado em noventa graus, e apoia um violão na coxa direita, em posição de tocar o instrumento, a mão esquerda segura o braço do violão e a direita está próxima das cordas do instrumento. O piso e o fundo são escuros.
HISTÓRIAS que o vento traz. Dramaturgia e direção: Amauri falcéti. Interpretação: Companhia Paideia de Teatro. São Paulo, 2017.

De onde vêm as histórias que conhecemos e contamos? Segundo o escritor alemão Walter Benjamin (1892-1940), boa fonte de narrativas orais é aquela pessoa que observa durante muito tempo um mesmo lugar, uma mesma cidade ou região e que, por essa razão, tem muitas lembranças e histórias para compartilhar. Também constituem uma boa fonte os viajantes que partem para terras estrangeiras e voltam com inúmeras histórias vistas, ouvidas e lidas sobre outros hábitos e comportamentos.

A Companhia Paideia de Teatro, em seu espetáculo Histórias que o vento traz, investigou o narrador que viaja por terras distantes. A peça apresenta o encontro entre alguns andarilhos que chegam com histórias de diferentes lugares do mundo.

Faça no caderno.

1. Observe a imagem, do espetáculo citado. Quais elementos cênicos utilizados você identifica?

Como o título do espetáculo sugere, a reunião das histórias é conduzida pelo vento, ou seja, por um elemento presente na natureza e que dá movimento ao caminho dos andarilhos, fazendo com que eles não fiquem em um único lugar.

Ao longo da peça, são contadas histórias que apresentam questões como as relações de trabalho, sofrimento e recompensa, assim como as injustiças causadas pela diferença entre a riqueza e a pobreza.

O trabalho da Companhia Paideia de Teatro quer ainda chamar a atenção dos espectadores para o fato de que a circulação de histórias dentro de uma cultura propicia o acesso a conhecimentos e saberes que não seriam adquiridos sem essa troca.

Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.

Transcrição do áudio

[Locutora] Olá, tudo bem? Amauri Falseti é diretor da Companhia Paideia e trabalha há 35 anos com jovens em atividades teatrais. Vamos ouvi-lo agora.

[Amauri Falseti] Sou Amauri. Trabalho com teatro há muitos anos e não tenho uma formação acadêmica nessa área. A minha formação está vinculada à minha própria vida. Comecei este trabalho como jovem, participando de um grupo de teatro e a minha formação eu devo a diversos mestres, que fui encontrando durante a minha vida. E principalmente à minha curiosidade e interesse na área, e até hoje eu ainda continuo buscando essa formação. Eu penso que uma companhia de teatro, você nunca vai encontrar uma igual à outra. Assim como o ser humano. Uma companhia, uma empresa, uma família, ela tem vida própria, ela tem característica própria, tem sonhos diferentes. Então a Companhia Paideia de Teatro, eu vou destacar algumas pequenas questões que eu acredito que difere de outras. É uma companhia que faz teatro para e com crianças. Faz teatro para e com jovens. Essa é a vocação da companhia. Outra questão é que a gente acredita que a ação do teatro na vida da criança e do jovem, principalmente do jovem, colabora sobremaneira para que ele possa entender o mundo de forma bem ampla e através da arte. Aprender através da arte e viver o teatro é uma característica que a Paideia tem.

- Quando a gente estava pensando o nome da nossa Companhia, fui à festa de uma amiga e a festa estava bem chata, e aí eu pedi pra ir na biblioteca. E aí eu peguei, na biblioteca, um livro chamado Paideia. E eu fiquei encantado. O livro chama-se “Paideia, a formação do homem grego”. Aí eu pedi pra Marilia, que era minha amiga, se ela me emprestava. Ela me deu o livro. Levei para ler. E nesse momento, eu descobri que o nome da Paideia deveria ser Paideia, porque o teatro tem a ver com a Grécia, tem a ver com a cultura. E a Paideia é tudo que o homem cria, tudo que o homem produz, tudo em que o homem acredita. E o teatro é exatamente o reflexo da própria vida, da minha, da tua e de uma sociedade. Então a Paideia é a Paideia.

- Se a gente pensar no teatro desde a sua origem, a gente sabe que o teatro sempre vai contar uma história. Então, se você pensar o teatro logo no comecinho, era alguém que se sentava na sua frente e contava uma história. Era uma conversa. Era uma troca de uma experiência que ele teve durante o dia. Provavelmente, eu fico imaginando, dentro da caverna, à noite, depois de eles caçarem, eles contavam como foi a caçada. E isso, no meu modo de ver, foi a primeira peça de teatro do mundo. Então a oralidade, o contar história, para o nosso teatro, que faz teatro para jovem e criança, primeiro, é descobrir que você tem uma história. E se você contar sua história, você está se conhecendo e, na medida que você sabe quem você é, você sabe quem é o outro. Para eu conhecer o outro, eu preciso me conhecer. E a melhor maneira é você contar uma história. Quem é você? Eu nasci, eu tive um pai, eu vivi, pronto. Então o teatro tem esse material como base. Então é impossível você fazer teatro para a criança, jovem, e mesmo pra adulto, se você não conta uma história. Se você não trabalha isso. E é muito comum você ouvir das crianças: eu não tenho história. Pronto, começou a peça. O fato de ele negar a existência da sua história, ele já está contando a história da vida dele. Então é parte do nosso trabalho, desde o primeiro momento, do espetáculo ir para o palco é a gente juntar crianças e contar a história que nós vamos contar.

Estúdio: Núcleo de Criação

Para experimentar

Improvisar uma história coletivamente

Agora vamos experimentar compor uma história coletivamente e de improviso.

  1. Faça uma roda junto com seus colegas, de modo que todos possam se escutar e se olhar ao longo da atividade.
  2. Em pequenos papéis, escreva temas que o interessam e deposite esses papéis no centro da roda. Esses temas funcionarão como o assunto principal da improvisação.
  3. Com o auxílio do professor, indiquem, na roda, uma pessoa que deverá começar a história e outra que deverá terminá-la. As pessoas situadas entre ambas serão as responsáveis por improvisar o desenvolvimento da história.
  4. A pessoa que começar a história irá até o centro da roda, sorteará um papel e mostrará para o restante da turma.
  5. A partir de então, em sentido horário, os participantes do jogo devem improvisar coletivamente uma história, de modo que cada um seja responsável por uma parte da composição.
  6. Ao final da primeira história, o jogo continua, com outros temas sendo sorteados.
  7. É importante que todos os jogadores estejam atentos ao ponto no qual a história foi deixada pelo jogador que o antecedeu na narrativa, de modo que todos os participantes possam contar e contribuir para a mesma história.
  8. Para concluir, converse com os colegas e com o professor a respeito dos pontos mais desafiadores da tarefa de improvisar coletivamente uma história a partir de um tema.

Fragmentos da história de um país

Da mesma maneira que andarilhos trazem um grande número de narrativas dentro de suas malas, a história dos países registra inúmeros acontecimentos marcantes. Contar alguns desses episódios históricos foi a proposta do grupo colombiano Teatro varassanta. Seu espetáculo Fragmentos de libertad, 200 años – libertad en proceso [Fragmentos de liberdade, 200 anos – liberdade em processo, em tradução livre] (2009) reúne uma série de textos provenientes de registros históricos, discursos políticos, poesia e prosa produzidos ao longo dos 200 anos de independência colombiana (1810).

2. Observe uma imagem do espetáculo. O que parece estar acontecendo nesta cena?

Fotografia. Apresentação teatral. Em primeiro plano, um homem veste fraque azul e saia rodada vermelha com tecido amarelo sobreposto, brilhante, e dança com o corpo inclinado para a frente. De mãos dadas com ele, uma mulher com cabelos encaracolados na altura das costas veste fraque azul e saia rodada amarela brilhante; as roupas e o cabelo estão em movimento. Atrás deles, uma mulher de vestido e cabelos presos dança sozinha. Ao fundo, à esquerda, há uma mulher de vestido longo nas cores verde, vermelho e azul em movimento de dança. Atrás dela, um homem segura uma das mãos de uma mulher, que joga o corpo para trás em movimento de dança.
FRAGMENTOS de libertad, 200 años – libertad en proceso [Fragmentos de liberdade, 200 anos – liberdade em processo, em tradução livre]. Direção: Fernando Montes. Interpretação: Teatro Varasanta. Bogotá, Colômbia, 2009.

Para contar a história do processo de independência de seu país, os atores do Varasanta criaram uma peça coral. Não há atores protagonistas, pois todos os artistas são responsáveis pelo desenvolvimento das narrativas. Para constituir um coro de narradores, todos vestem uma roupa base formada por saias longas e, para compor personagens específicos da história colombiana, utilizam alguns adereços e outras roupas no tronco e na cabeça.

O espetáculo faz uma crítica a respeito da ideia de liberdade resultante do processo da independência: a história da colonização e independência colombiana vem acompanhada do extermínio de grande parte da população indígena que antes vivia em suas terras. O Varasanta, por meio da junção narrativa entre a oralidade dos povos indígenas e os discursos políticos da independência, propõe uma reflexão sobre a história contemporânea do país.

A tradição oral dos nacali

As maneiras de preservar as narrativas e tradições de um país são diversas. Para transmitir tantas histórias é preciso saber ver, escutar e relembrar aquilo que foi visto e ouvido. Essas são duas qualidades presentes também na arte dos nacali, no Irã. Considerada uma das fórmas mais antigas de teatro persa, o nacali consiste em uma contação de histórias acompanhada de músicas, dança e elementos decorativos, como telas pintadas com alguma recriação da narrativa apresentada.

Fotografia. Um homem idoso com cabelo branco e barba branca veste camisa branca, colete estampado e calça cinza. Ele está em pé, olhando para cima. Com a mão esquerda, o homem segura um microfone e uma bengala, o dedo indicador apontando para cima.  O dedo indicador da mão direita está apontado para uma pintura em tela atrás dele. A tela apresenta imagens coloridas de homens, cavalos e seres mitológicos.
Naqqāl iraniano durante sua performance. Fotografia de 2012.

É uma arte que exige estudo e preparo: os nacals (per­formers dos Naqqālai) devem ter sua memória treinada e uma grande técnica para a improvisação, pois adaptam suas histórias a cada apresentação, de acordo com a audiência. Além disso, as plateias, em geral, já conhecem as histórias a que vão assistir, por isso o contador tem de se preocupar com a maneira como irá recontá-las, para cativar os ouvintes.

3. O que faz com que você goste de ouvir uma mesma história mais de uma vez? Quais estratégias você poderia utilizar para contar uma história já conhecida pelos seus ouvintes?

Um Naqqāl deve saber de cor diversas histórias e poemas de seu país, assim como histórias fantásticas da tradição persa. Ao longo de sua performance, ele veste uma roupa sem muitos adereços. Isso faz com que sua habilidade de improvisação tenha de ser ainda mais desenvolvida, pois ele deve conseguir representar diversos papéis para o público de maneira convincente, como os de grandes heróis, reis, guerreiros, princesas etcétera

Mesmo sendo uma arte tradicional iraniana, com a modernização da sociedade a arte dos Naqqālapóstrofo s está em declínio. As novas gerações se interessam cada vez menos em assistir a esse tipo de arte e se tornar um Naqqāl. Deve-se notar ainda que os Naqqālapóstrofo s atuam pelo seu papel social: antes de ser artistas, eles são considerados guardiões da memória coletiva.

Para pesquisar

Histórias que nos contam

Agora é o momento de realizar uma pesquisa sobre algumas histórias.

1 Reúna-se com os colegas em um grupo de até cinco integrantes.

2 Você e seu grupo devem fazer uma coleta de cinco histórias com base nos seguintes quesitos:

a) Recolher uma história de vida de uma pessoa com idade avançada.

b) Recolher uma história de uma pessoa que viajou ou conheceu diferentes lugares.

c) Recolher uma história de família.

d) Recolher uma história sobre um fato histórico de sua região.

e) Recolher um mito ou história fantástica de sua região.

3 Para a coleta dessas histórias, usem materiais de registro audiovisual, como câmeras e gravadores de voz, assim como pesquisas em livros e na internet.

4 Coletadas as cinco narrativas, você e seu grupo devem criar de fórma cênica um modo de contá­‑las para o restante da turma. Vocês podem optar por uma composição realizada em coro ou criar uma fórma específica para narrar cada história.

Faça no caderno.

5 Para concluir, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

a) Quais momentos da coleta de histórias foram mais interessantes?

b) Quais são as diferenças gerais entre os cinco tipos de história coletados?

c) Quais detalhes presentes nas histórias as tornam mais interessantes?

O teatro conta a história de um contador de histórias

Fotografia. À esquerda, um homem grisalho com echarpe branca no pescoço, de perfil, olhando para a direita. À direita, um homem com cabelos com dreadlocks e barba veste uma camisa branca e olha para o homem grisalho, em conversa, com os braços abertos e as palmas das mãos viradas para cima. À direita, ao fundo, uma mulher vestida de túnica amarela observa a conversa. Ao lado dela, à direita, um homem vestido de túnica azul observa a conversa e sorri.
VIDA e ensinamentos de tiérno bocár. Direção: píter Brook. Interpretação: çotigu í cuiatê e elenco de atores do Théâtre des Bouffes du Nord. Duisburgo, Alemanha, 2004.

O exercício da palavra também está vinculado ao desenvolvimento e à transmissão da sabedoria.

4. Observe a imagem. Como você descreveria essa cena?

Versão adaptada acessível

4. Retome a imagem. Como você descreveria essa cena?

tiérno bocár (1875-1939) foi um líder espiritual africano do Mali, e a peça teatral Vida e ensinamentos de tiérno bocár (2004), dirigida pelo inglês píter Brook (1925-2022) e encenada pelo Centro Internacional de Pesquisa Teatralglossário , contou sua história.

bocár defendia o respeito entre as pessoas, promovendo um pensamento muçulmano tolerante. Para esse fim, ele dizia que não existia apenas uma verdade, mas sim três: a minha, a sua e a do mundo, ou seja, a verdade inatingível.

Na peça de píter Brook, o ator e griotglossário Sôtiguí Cuiátê (1936-2010) interpretava o sábio africano. A encenação utilizava diversos elementos épicos presentes na arte da palavra dos griots e se valia de poucos recursos cênicos: figurinos, luzes e cenários eram bastante singelos. Assim, os espaços vazios da cena e a simplicidade geral dos elementos contribuíam para concentrar a atenção do público nas palavras e nos ensinamentos de tolerância de tiérno bocár.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Há espaços em sua cidade/região nos quais as pessoas se reúnem para contar e ouvir histórias? Se sim, quais?
  2. Quais são os espaços nos quais você entra em contato com a história de seu país? Como acontece essa transmissão?
  3. Quais pessoas você conhece que têm uma grande capacidade de expressão por meio das palavras?

Foco na História

Sherazade e suas mil e uma noites

Uma das narradoras mais conhecidas da história é Sherazade. Você provavelmente já deve ter ouvido seu nome, assim como deve conhecer algumas das histórias contadas por ela, como Aladim e a lâmpada maravilhosa, As viagens de simbá e Ali Babá e os quarenta ladrões, que representam uma parte importante da tradição oral do Oriente Médio e do sul da Ásia.

Qual foi o motivo que levou xerazáde a contar tantas histórias? A resposta é simples: resolver um problema de vida ou morte. Na antiga Pérsia, o sultão xariá havia tomado uma decisão drástica por causa de uma decepção conjugal com sua ex-esposa: a cada noite, ele se casaria com uma mulher diferente de seu reino e, ao raiar do dia, ela seria morta, de modo que ele não pudesse ser contrariado nunca mais. Os anos se passaram e muitas mulheres foram mortas, até sobrarem poucas no reino. A jovem xerazáde, filha do vizir do sultão, decidiu pôr fim a essa chacina. Por saber ler, contar histórias e se interessar pelo universo do saber e da filosofia, xerazáde pediu para ser oferecida como esposa a xariá. Entretanto, ela lhe impôs uma condição: sua irmã, Duniazade, deveria acompanhá-la o tempo todo, inclusive ao longo da noite.

Assim foi feito. xerazáde se casou com xariá e, na noite de núpcias, antes de dormir, Duniazade pediu à irmã: xerazáde, como amanhã você será morta e não nos veremos mais, conte alguma das espantosas histórias que você me narrava quando éramos crianças. Autorizada pelo sultão, xerazáde começou a contar e, logo antes do sol raiar, ela interrompeu a história em seu auge, mantendo a curiosidade de xariá. Isso fez com que o sultão adiasse o momento da morte de xerazáde para o dia seguinte, com o objetivo de ouvir o final daquela história maravilhosa. Na noite seguinte, aconteceu o mesmo, e assim foi ao longo de mil e uma noites. Esse tempo foi o suficiente para que as histórias de xerazáde curassem a ira do sultão contra as mulheres e propiciou que a contadora de histórias fosse liberta da sua sentença de morte.

As mil e uma noites, além de compilar uma série de narrativas árabes e persas, apresenta uma perspectiva fundamental para o ato de contar histórias: a possibilidade de intensificar a nossa relação com a própria vida, por meio da troca de experiências e palavras.

Pintura. À esquerda, uma mulher de cabelos longos está ajoelhada e com as mãos apoiadas nos pés de uma cama. Ao centro, em cima da cama, um homem ajoelhado usa chapéu, camisa florida e calça vermelha. Ele está de perfil e segura uma fruta na mão direita. A mão esquerda segura o pulso de uma mulher à sua frente, que está semideitada em almofadas. Ela tem cabelos compridos lisos, usa colar no pescoço e veste saia longa roxa. Ela está de perfil, o braço esquerdo repousado em uma das almofadas, e olha para o homem. À direita, ao fundo, um homem usando saia longa, chapéu vermelho e colar segura um abanador feito de penas de pavão.
xerazáde presa pelo sultão. 1895. Gravura colorida do livro As mil e uma noites. Coleção particular.

Foco em...

Sotiguicuiatê e a palavra do griot

Fotografia. Busto de um homem negro de barba,  com cabelos compridos, grisalhos e com dreadlocks na altura do peito. Ele veste terno de risca de giz, cachecol amarelo e laranja, segura com a mão esquerda um chapéu roxo e, com a mão direita, uma bengala de madeira, ambos à frente do corpo.
O griot e ator Sôtiguí Cuiátê fotografado durante o 59º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em Berlim, Alemanha. Fotografia de 2009.

Sôtiguí Cuiátê nasceu no Mali, um país do noroeste da África. Ele também tinha origem guiné e considerava Burkina Fasso como seu país por adoção. De ascendência mandinga, cuiatê também adquiriu nacionalidade suíça, por conta do seu terceiro casamento. Além de habitante de muitos países, çotigu í foi, ao longo de sua vida, ator de teatro e cinema, narrador de histórias, jogador de futebol, boxeador, caçador, enfermeiro, professor, coreógrafo, cantor, dançarino e compositor. Contudo, ele sempre foi griot.

Um griot atua principalmente fazendo uso das palavras: conta histórias, canta, relembra genealogias de famílias e contribui para a resolução de problemas cotidianos.

Cada griot é acompanhado por um griot parceiro, cujo objetivo é zelar pela qualidade do dizer e das palavras do primeiro. Esse acompanhante tem a função específica de desenvolver a escuta do griot, sustentando o ritmo e a vivacidade de suas palavras e, ao mesmo tempo, assegurando que o público ouvinte receba suas palavras com clareza.

Na década de 1970, cuiatê foi convidado por píter Brook para integrar o Centro Internacional de Pesquisa Teatral, em Paris. Esse centro reúne atrizes e atores de diversos países, como Índia, Japão, Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, e lá Sôtiguí Cuiátê atuou em diversas peças e filmes, como O Marrabaráta.

Para cuiatê, a experiência do teatro europeu foi radicalmente nova. Nos países da África Ocidental, nos quais ele passou grande parte de sua vida, o que nós estamos acostumados a chamar de teatro tem três nomes diferentes. A tradução do primeiro seria “conhecermo-nos”. O segundo nome significa “grande caracol” e se refere ao modo como as pessoas ficam juntas para participar como público: um círculo de crianças, outro de mulheres, outro de idosos e outro de homens jovens que protegem o restante. E nesse grande caracol se faz teatro para todas as idades juntas.

O terceiro nome quer dizer “tirar o véu que cobre nossa visão, nos divertindo” ou “clarear a própria visão, brincando”.

Sobre essa possibilidade de um teatro que brinca e é sério ao mesmo tempo, Sôtiguí Cuiátê lembrava sempre de uma canção que sua mãe cantava para ele desde criança. A canção diz: “O sério não está separado da brincadeira e a brincadeira não está separada do sério”. E ele dizia que todos os dias, quando acordava, se lembrava dessa canção e acrescentava: “Sério demais não é sério. Divertido demais não é divertido. Sério sem diversão não é sério. Diversão sem seriedade não é diversão”.

Foi no encontro de culturas entre o continente europeu e as tradições africanas que Sôtiguí Cuiátê pôde exercer seu trabalho no teatro com a palavra e as histórias de sua terra natal e muitas outras.

Fotografia. Retrato de um homem negro com cabelo raspado. Ele veste túnica azul com detalhes em branco no peito e está com o rosto virado para a esquerda. Com a mão direita segura um objeto que está apoiado em seu colo, e tem a mão esquerda levantada na altura da cabeça. Ao fundo, cenário de árvores desfocado.
Griot apresentando-se durante a 6ª edição do Festival de Contos RIAPL, na República do Congo. Fotografia de 2013.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Em seu cotidiano, você identifica alguém ou algumas pessoas que poderiam cumprir as funções sociais dos griots?
  2. Qual é a importância da palavra para a tradição dos griots?
  3. Qual é a importância dos griots para a sociedade na qual estão inseridos?

Foco no conhecimento

Os três tipos de história

Fotografia. Apresentação teatral. No palco, à esquerda, um homem usa roupa azul. Ele está sentado segurando um instrumento de madeira redondo com cordas. Atrás dele, uma mulher com bata amarela está de pé. No centro, um homem com beca verde e amarela. Ele está sentado segurando um tambor. À direita, diante de uma caixa de som, há um homem em pé, de túnica estampada em tons de azul e marrom. Ele tem pintura africana na testa e usa um microfone de cabeça. As mãos estão fechadas e a cabeça voltada para a esquerda. De costas, veem-se cabeças de espectadores na plateia. No fundo, telão com o desenho de uma galinha.
Contador de histórias apresentando-se no Re-imagined Storytelling Festival, em Nairobi, Quênia, em dezembro de 2018.

Existem três tipos de história possíveis: aquelas contadas por quem as conhece, aquelas que todos conhecem (os que contam e os que escutam) e aquelas que ninguém conhece, ou seja, narrativas improvisadas. A seguir, estudaremos as particularidades de cada um desses tipos:

1. A história conhecida apenas pelo narrador

Algumas vezes, entre um grupo de pessoas, apenas uma delas sabe de um fato ou de uma história que as outras desconhecem. Nesse caso, o narrador tem uma vantagem: por ser desconhecida, a história costuma causar maior interesse, pois os que escutam a ouvem pela primeira vez. Ao mesmo tempo, o grande problema desse tipo de história é a compreensão do fio narrativo: como ninguém nunca ouviu a história, o narrador tem de ter muito cuidado com os detalhes e as diversas etapas que a compõem para que ela seja compreensível.

Assim, esse tipo de história exige que o narrador conheça bem todos os fatos da narrativa e seja organizado na hora de expô-los. Os focos desse tipo de narrativa são, portanto, os assuntos e detalhes da história.

2. A história conhecida por todos

Em outros casos, todos os integrantes de um grupo conhecem as narrativas que serão contadas. Isso pode se dar entre amigos ou quando aconteceu algum evento impactante e todos lembram o ocorrido. Vemos exemplos desse tipo de história no teatro ou no cinema, quando assistimos a uma versão de uma narrativa já conhecida. A grande desvantagem desse tipo de história é que, dado que ela é conhecida por todos, qual pode ser o interesse das pessoas em ouvi-la de novo? Contudo, dependendo da maneira como é contada pelo narrador, ela pode ser extremamente interessante e prazerosa de ouvir. Assim, esse tipo de história, mais do que o peso no assunto ou nos detalhes, necessita de um narrador que se preocupe com o modo como irá contá-la.

3. A história improvisada

Há ainda casos nos quais quem conta a história não sabe como ela terminará e quem escuta tampouco. Nessas histórias improvisadas, narradores e público descobrem o que se conta ao mesmo tempo. Isso torna as histórias, em geral, dinâmicas e divertidas, por mais que os assuntos apresentados sejam sombrios ou pesados. Ao mesmo tempo, seu desafio é grande: como elas são construídas em tempo real, é fundamental que o narrador se lembre bem de todos os detalhes e da sequência de acontecimentos para não comprometer o fio narrativo que está sendo criado. Dessa fórma, esse tipo de história exige muita agilidade e concentração do narrador.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Qual das três modalidades de narrativa apresentadas você acha mais desafiadora? Por quê?
  2. Qual das três modalidades de narrativa apresentadas você mais observa em seu cotidiano?

Processos de criação

Neste processo de criação, você e sua turma deverão compor uma encenação teatral de curta duração com foco na oralidade e em assuntos estudados ao longo do capítulo. O texto que guiará os trabalhos da turma será o conto A roupa nova do imperador, do escritor dinamarquês râns cristian anderssen (1805-1875).

Antes de começar o trabalho, leia com atenção o conto a seguir.

A ROUPA NOVA DO IMPERADOR

Há muitos e muitos anos havia um Imperador tão apaixonado por roupas novas que gastava com elas todo o dinheiro que possuía. Pouco se incomodava com seus soldados, com o teatro ou com os passeios pelos bosques, contanto que pudesse vestir seus trajes.

Tinha um para cada hora do dia, e, em vez de se dizer dele o que se diz de qualquer imperador: “Está na Câmara do Conselho”, dizia-se sempre a mesma coisa: “O Imperador está se vestindo”.

Na capital em que ele vivia, a vida era muito alegre; todos os dias chegavam multidões de forasteiros para visitá-la, e, entre eles, certa ocasião chegaram dois vigaristas. Fingiram-se de tecelões, dizendo-se capazes de tecer os tecidos mais maravilhosos do mundo.

E não somente as cores e os desenhos eram magníficos como também os trajes que se faziam com aqueles tecidos possuíam a qualidade especial de serem invisíveis para qualquer pessoa que não tivesse as qualidades necessárias para desempenhar suas funções ou que fosse muito tola e presunçosa.

— Devem ser trajes magníficos – pensou o Imperador. — E se eu vestisse um deles, poderia descobrir todos aqueles que em meu reino carecessem das qualidades necessárias para desempenhar seus cargos. E também poderei distinguir os tolos dos inteligentes. Sim, estou decidido a mandar tecer uma roupa para mim, a qual me servirá para tais descobertas.

Entregou a um dos tecelões uma grande quantia como adiantamento, a fim de que os dois pudessem começar imediatamente com o esperado trabalho.

Os dois vigaristas prepararam os teares e fingiram entregar-se ao trabalho de tecer, mas o certo é que não havia nenhum fio nas lançadeiras. Antes de começar, pediram uma certa quantidade da seda mais fina e fio de ouro da maior pureza e guardaram tudo em seus alforjes e depois começaram a trabalhar, isto é, fingindo fazê-lo, com os teares vazios.

— Gostaria de saber como vai o trabalho dos tecelões – pensou um dia o bondoso Imperador.

Todavia, ficou um tanto aflito ao pensar que alguém que fosse tolo ou não estivesse capacitado para exercer sua função não poderia ver o tecido. Não temia por si mesmo, mas achou mais prudente enviar uma outra pessoa, para que lhe desse conta daquilo.

Todos os habitantes da cidade conheciam as maravilhosas qualidades do tecido em questão, e todos, também, desejavam saber, por esse meio, se seu vizinho ou amigo era um tolo.

— Mandarei meu fiel primeiro-ministro visitar os tecelões – pensou o Imperador. — Será o mais capacitado para ver o tecido, porque é um homem muito hábil e ninguém cumpre seus deveres melhor do que ele.

E assim o bom e velho primeiro-ministro se dirigiu para o aposento em que os vigaristas trabalhavam nos teares completamente vazios.

— Deus me proteja! – pensou o ancião, abrindo os braços e os olhos. — Mas eu não vejo nada! – no entanto, evitou dizer isso.

Os dois vigaristas pediram-lhe que fizesse o favor de aproximar-se um pouco mais e rogaram-lhe que desse a sua opinião a respeito do desenho e do colorido do tecido. Mostraram o tear vazio, e o pobre ministro, por mais que se esforçasse para ver, não conseguia enxergar coisa alguma, porque não havia nada para ver.

— Deus meu! – pensava. — Será possível que eu seja tão tolo assim? Nunca me pareceu e é preciso que ninguém o saiba. Talvez eu não esteja capacitado a desempenhar a função que ocupo. O melhor será fingir que estou vendo o tecido.

— Não quer dar a sua opinião, senhor? – perguntou um dos falsos tecelões.

— É muito lindo! Faz um efeito encantador – exclamou o velho ministro, fitando através de seus óculos. — O que mais me agrada são o desenho e as maravilhosas cores que o compõem. Asseguro-lhes que darei conta ao Imperador do quanto gosto de seu trabalho, muito bem aplicado e lindíssimo.

— Ficamos muito honrados em ouvir tais palavras de vossos lábios, senhor ministro – replicaram os tecelões.

Começaram então a dar-lhe detalhes do complicado desenho e das cores que o formavam. O ministro ouviu-os com a maior atenção, com a ideia de poder repetir suas palavras quando estivesse na presença do Imperador.

A seguir os dois vigaristas pediram mais dinheiro, mais seda e mais fio de ouro, para que pudessem prosseguir com o trabalho. Porém, assim que receberam o solicitado, guardaram-no como antes. Nem um só fio foi colocado no tear, embora eles fingissem continuar trabalhando apressadamente.

O Imperador enviou outro fiel cortesão para dar-lhe conta dos progressos do trabalho dos falsos tecelões e a fim de saber se eles demorariam muito para entregar o tecido. A este segundo enviado aconteceu a mesma coisa que com o primeiro-ministro, isto é, mirou e remirou o tear vazio, sem ver tecido algum.

Não acha que é uma fazenda maravilhosa? – perguntaram os vigaristas, mostrando e explicando um desenho imaginário e um colorido não menos fantástico, que ninguém conseguia ver.

Sei que não sou tolo – pensava o cortesão –, mas se não vejo o tecido é porque não devo ser capaz de exercer minha função à altura do esperado. Isso me parece estranho. Mas é melhor não dar a perceber esse fato.

Por esse motivo não falou no tecido que não via e manifestou seu entusiasmo pelo colorido maravilhoso e pelos originais desenhos.

— Ali está algo realmente encantador – disse mais tarde ao Imperador, quando prestou contas de sua visita.

Por sua vez, o Imperador achou que devia ir ver o famoso tecido, enquanto ainda estivesse no tear. E assim, acompanhado por um escolhido grupo de cortesãos, entre os quais se encontravam o primeiro-ministro e o outro palaciano, que haviam fingido ver o tecido, foi fazer uma visita aos falsos tecelões, que com o maior cuidado trabalhavam no tear vazio, em meio à maior seriedade.

— É magnífico! – exclamaram o primeiro-ministro e o palaciano. — Digne-se Vossa Majestade a olhar para o desenho. Que cores maravilhosas!

E apontavam para o tear vazio, pois não tinham dúvidas de que as outras pessoas viam o tecido.

— Mas o que é isto? – pensou o Imperador. — Não estou vendo nada! Isso é terrível! Serei um tolo? Não terei capacidade para ser Imperador? Certamente não poderia acontecer-me nada pior.

— É realmente uma beleza! – exclamou logo depois. — O tecido merece a minha melhor aprovação.

Manifestou a sua aprovação por meio de alguns gestos, enquanto olhava para o tear vazio, pois ninguém poderia induzi-lo a dizer que não via coisa alguma.

Todos os outros cortesãos olhavam, por sua vez. Mas não viam nada. Porém, como nenhum queria dar parte de tolo ou de incapaz, fizeram coro com as palavras de Sua Majestade.

— É uma beleza! – exclamaram em coro.

E aconselharam o Imperador que mandasse fazer uma roupa com aquele tecido maravilhoso, a fim de estreá-la numa grande procissão que devia realizar-se dali a alguns dias.

Os elogios corriam de boca em boca e todos estavam entusiasmados. E o Imperador condecorou os dois vigaristas com a ordem dos cavaleiros, cuja insígnia poderiam usar, e concedeu-lhes o título de “Cavaleiros Tecelões”.

Os dois vigaristas ficaram a noite toda trabalhando, à luz de dezesseis velas, na noite anterior ao dia da procissão; desejavam que todos testemunhassem o grande interesse que eles demonstravam em terminar a roupa do soberano. Fingiram tirar a fazenda do tear, cortaram-na com tesouras enormes e costuraram-na com agulhas sem linha de espécie alguma. Finalmente disseram:

— Já está pronto o traje de Sua Majestade.

O Imperador, acompanhado por seus mais nobres cortesãos, foi novamente visitar os vigaristas, e um deles, levantando um braço, como se segurasse uma peça de roupa, disse:

— Aqui estão as calças. Este é o colete. Veja Vossa Majestade o casaco. Finalmente, dignai-vos a examinar o manto. Estas peças pesam tanto quanto uma teia de aranha. Quem as usar mal sentirá o seu peso. E essa é uma de suas maiores qualidades.

Todos os cortesãos concordaram, mesmo não vendo coisa alguma, pois na realidade não havia traje para ver, já que nada havia.

— Dignai-vos a tirar o traje que leva – disse um dos falsos tecelões – e assim poderá experimentar a roupa nova na frente do espelho.

E o Imperador tirou a roupa que vestia e os impostores fingiram entregar-lhe sucessivamente e ajudá-lo a vestir cada uma das peças que compõem um traje.

Fingiram colocar algo ao redor de sua cintura e o Imperador, nesse meio-tempo, virava-se uma vez ou outra para o espelho, a fim de contemplar-se.

— Que bem assenta este traje em Sua Majestade. Como está elegante. Que desenho e que colorido! É uma roupa magnífica!

— Lá fóra está o dossel sob o qual irá Vossa Majestade tomar parte na procissão – disse o mestre de cerimônias.

— Ótimo, já estou pronto – disse o Imperador.

— Acham que esta roupa me assenta bem?

E novamente mirou-se no espelho, a fim de fingir que se admirava vestido com a roupa nova.

Os camaristas, que deviam carregar o manto, inclinaram-se fingindo recolhê-lo do chão e logo começaram a andar com as mãos no ar. Também não se atreviam a dizer que não viam coisa alguma.

O Imperador foi ocupar seu lugar no cortejo da procissão embaixo do luxuoso dossel e todos os que estavam nas ruas e nas janelas exclamaram:

— Como está bem-vestido o Imperador! Que cauda magnífica! A roupa assenta nele como uma luva!

Ninguém queria dar a perceber que não podia ver coisa alguma, para não passar por tolo ou por incapaz. O caso é que nunca a roupa do Imperador alcançara tanto sucesso.

— Mas eu acho que ele não veste roupa alguma! – exclamou então um menino.

— Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente! – observou seu pai a quantos o rodeavam.

Imediatamente todo mundo se comunicou pelo ouvido as palavras que o menino acabava de pronunciar.

— Não veste roupa alguma. Foi isso o que assegurou este menino.

— O Imperador está sem roupa! – começou a gritar o povo.

O Imperador fez um trejeito, pois sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou:

— A procissão tem de continuar.

E assim continuou mais impassível que nunca e os camaristas continuaram segurando a sua cauda invisível.

ANDERSEN, Hans Christian. Contos e histórias. São Paulo: Landy Editora, 2004.

  1. Roteirização
    1. Reúna-se com os colegas em um grupo de até cinco integrantes.
    2. Leiam o texto e conversem entre si com base nas seguintes questões: o que vocês pensam desse conto? Que assuntos são tratados nessa história? Quais acontecimentos são narrados?
    3. Após essa conversa, escrevam, em uma folha de papel, a estrutura da história. Para isso, vocês podem enumerar:
      • Todos os personagens e sua função na narrativa.
      • Todos os acontecimentos da história.
      • Em que consistem o começo, o desenvolvimento e a finalização da história.
      • Os espaços nos quais a história acontece.
    1. Com base na estrutura, vocês devem criar uma proposta de como contar essa história já conhecida por todos para sua turma. Pensem em criar um ponto de vista que surpreenda seus colegas.
  2. Preparação

   Vocês devem preparar a narração da história levando em conta os seguintes elementos cênicos:

  • Espaço.
  • Relação com o público.
  • Objetos, adereços e figurinos.
  • Jogo entre os improvisadores.

3. Apresentação Com base em tudo aquilo que foi elaborado nas etapas anteriores, apresentem a encenação para a turma e assistam às propostas de seus colegas.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Quais estratégias cada grupo mobilizou para que a história conhecida por todos ganhasse interesse?
  2. Quais seriam suas sugestões para que cada trabalho apresentado fosse ainda mais interessante?

Organizando as ideias

Recorte de quatro imagens, da esquerda para a direita: Imagem 1: detalhe de fotografia. Três pessoas com rostos pintados de branco, sobrancelhas pretas, batom vermelho e barba, chapéus vermelhos redondos e vestidos vermelhos com camadas e amarrações na cintura. Elas seguram lanças coloridas. Imagem 2: detalhe de fotografia. Um homem com rosto pintado de branco com listra amarela ao centro, da testa ao nariz; ele veste camisa amarela, colete marrom, lenço azul no pescoço e calça estampada e está sentado diante de um instrumento de percussão segurando uma baqueta em cada mão, para o alto. Ele sorri. Imagem 3: detalhe de pintura. Um homem e uma mulher em movimento de dança; o homem usa fraque azul e saia rodada vermelha e dourada. A mulher, com cabelos encaracolados na altura das costas, usa fraque azul e saia rodada dourada. Eles estão de mãos dadas. Imagem 4: detalhe de fotografia. Retrato de um homem  com cabelos e barba grisalhos, com dreadlocks longos, usando camisa branca e echarpe cor de laranja; ele segura à frente do corpo um chapéu roxo.

Neste capítulo, você pôde conhecer obras e artistas que aproximam a linguagem teatral de narrativas de memória ou de invenção de novos mundos. Para finalizar nosso estudo a respeito da oralidade e da possibilidade de se brincar com palavras em cena, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

Faça no caderno.

  1. Como você vê agora a relação entre seu cotidiano e a oralidade?
  2. Quais artistas e quais obras vistas neste capítulo despertaram seu interesse? Por quê?
  3. Quais foram suas descobertas a respeito da arte de narrar e transmitir histórias?
  4. Quais outras descobertas você fez ao longo deste capítulo? O que você gostaria de continuar aprofundando?

Glossário

Centro Internacional de Pesquisa Teatral
Criado em 1970 por píter Brook e michelín rozân, o cê i pê tê é um espaço multicultural de pesquisa teatral que tem como séde o Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris. Ao longo de seus primeiros três anos de existência, os atores, dançarinos, músicos e outros performers viajaram por muitos países do mundo, pesquisando histórias comuns a vários povos e fundamentos da arte teatral.
Voltar para o texto
Griot
Palavra cuja origem é “criado” e se pronuncia “griô”. É o termo correspondente em francês para djéli, que significa “sangue” e que nomeia os indivíduos que têm o compromisso de preservar e transmitir histórias, fatos históricos, conhecimentos e canções de seu povo de origem.
Voltar para o texto