CAPÍTULO 7 Tornar-se outro: corpo e transfiguração

Fotografia. Três pessoas enfeitadas usam chapéu com peruca colorida e brilhosa, ponchos coloridos com desenhos da bandeira do Brasil e de Pernambuco e de flores. Atrás, uma pessoa caminha e segura um estandarte vermelho, amarelo e dourado do Condado, composto de flores e do nome na parte de cima, em letras douradas e fundo branco com flores, MARACATU DE BAQUE SOLTO - LEÃO DE OURO; ao centro do estandarte, fotografia de um leão; na parte inferior do estandarte, data de fundação e nome nas cores vermelha e dourada. Ao fundo da imagem, há pessoas em casas simples e carros estacionados em rua de terra. Atrás, há árvores.
Maracatu de Baque Solto na cidade de Moreno (Pernambuco), 2021.

Há ocasiões em que nos vestimos e agimos de fórma diferente para celebrar ou homenagear nossos ancestrais, tradições culturais, divindades e outras conexões em relação àquilo que não faz parte do mundo material.

  1. Com base em sua experiência de vida, reflita: em quais ocasiões você usa determinados trajes e age de fórma diferente da habitual?
  2. Observe a imagem de abertura do capítulo. Você reconhece essa manifestação cultural?

A imagem mostra os Caboclos de Lança, figuras dos Maracatus Rurais de Pernambuco, responsáveis por proteger a brincadeira e o estandarte, organizar a evolução do cortejo e saudar os donos das casas que os recebem.

Com a indumentária, cada brincante que vive o Caboclo de Lança se transfigura, ou seja, altera suas feições e suas maneiras de proceder de acordo com o que sua tradição prevê para o período em que se apresenta. A cabeça colorida e as flores são a conexão com o divino; a pintura do rosto e as máscaras impedem que se identifique o brincante; a gola é a armadura; o surrão, conjunto de sinos que tocam segundo o movimento do caboclo, o orienta, pois é por meio do som que são dados os comandos e o grupo se mantém unido; e a lança é o instrumento de proteção.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Quais elementos de vestuário são geralmente utilizados em manifestações culturais de sua região?
  2. Quais rituais se celebram com o vestuário apresentado na imagem da abertura deste capítulo? As pessoas dançam? Cantam? Dramatizam?

SOBREVOO

Mascarados, tradições, ritos e arte

Existe ao redor do mundo uma série de manifestações artísticas, culturais e ritualísticas nas quais seus atuantes vivem experiências de transfiguraçãoglossário , ou seja, de se tornar outro corpo, espírito ou figura. Há muitos exemplos de transfiguração, tanto em linguagens artísticas, como o teatro e a dança, quanto em manifestações, rituais e celebrações coletivas.

Faça no caderno.

1. Você já tinha ouvido falar de transfiguração? Já assistiu a um processo semelhante? Onde? Como?

Versão adaptada acessível

1. Você já sabia o que é transfiguração? Já presenciou um processo semelhante? Onde? Como?

O povo indígena Wauja glossário realiza um intenso ritual de transfiguração para tratar as doenças. De acordo com a cultura Vauia, quando uma pessoa adoece, sua alma é separada em pedaços e pode ser capturada por um ser-espírito chamado apá pá a tái. Pode-se dizer que quem está doente tem uma parte de sua alma passeando com um desses espíritos, que, por sua vez, se alimenta da energia vital da parte da alma roubada.

Fotografia. Máscara indígena de palha com desenho de dois pássaros de cor preta predominante e com detalhes em branco, vermelho e amarelo. Os pássaros têm bicos longos e curvados, e estão um de frente para o outro. A máscara está pendurada em ambiente com teto de palha. Ao fundo, dois homens indígenas estão sentados em um banco de madeira; o da esquerda está com uma caneca na mão esquerda e o da direita com um objeto apoiado no colo, no qual trabalha com ambas as mãos.
Máscara confeccionada por indígenas Vauia da aldeia Piiulága para o ritual apá pá a tái. Gaúcha do Norte (Mato Grosso), 2019.

Para curar quem sofre de uma doença, deve-se trazer o apá pá a tái responsável pelo roubo para perto e fazer um festejo, incorporando esse ser-espírito de volta ao próprio corpo do doente. Para realizar esse movimento, o xamã deve descobrir com quais apá pá a tái estão os pedaços da alma dos doentes e convocá-los para aparecer. Então, são confeccionadas imensas máscaras e aerofonesglossário e alguns Vauia se transfiguram nesses espíritos visitando as pessoas doentes e soprando e esfregando tabaco em seus corpos. Com isso, acredita-se que os fragmentos da alma retornam aos corpos dos doentes, assim como sua saúde.

As máscaras utilizadas pelos Vauia ao longo do ritual não são simples objetos. Elas aproximam os espíritos que se manifestam do corpo dos Vauia. Indo mais além, não são apenas os humanos que se transfiguram em apá pá a tái, mas os próprios espíritos se transformam em seres humanos, estabelecendo uma relação direta entre dois mundos distintos e, ao mesmo tempo, complementares.

Foco na História

Máscara e sociedade

As máscaras vêm sendo usadas em diversas manifestações (ritos, celebrações, religiões, festas, artes etcétera), em diferentes sociedades, há milhares de anos. Seu uso tem diversas funções ou características: proporcionar às pessoas maneiras específicas de se relacionar com o fenômeno da morte; o exercício espiritual; fazer homenagens a divindades e ancestrais; se transfigurar em outros seres, como animais, deuses, criaturas imaginárias etcétera

As máscaras mortuárias, por exemplo, estão presentes em diversas culturas do passado. Você já deve ter ouvido relatos a respeito das múmias do Egito antigo. O faraó tutancâmom, falecido em 1324 antes de Cristo, teve seu corpo mumificado e depositado em um sarcófago construído e decorado com ouro e pedras preciosas. No ritual de seu sepultamento, foi colocada uma máscara esculpida tendo seu rosto de molde. Acreditava-se, com isso, que a máscara guiaria sua alma e a preservaria dos espíritos malignos durante a jornada até o outro mundo.

Assim aconteceu também com os povos mesoamericanos que habitaram a região dos Andes desde alguns séculos antes de Cristo. As máscaras, para esses povos, além de ter conexão com os mortos, tinham também vínculo com animais sagrados e entidades espirituais. Algumas delas, inclusive, apresentavam características de antropozoomorfismo, ou seja, representavam seres cujo corpo é parte humana e parte animal. Uma delas é a da divindade Tlaloc, deus das chuvas, raios e trovões, cuja máscara apresenta a união entre duas serpentes simbolizando fertilidade.

Fotografia. Máscara de um crânio, azul com detalhes em marrom. Os olhos são dois círculos vazados, sem preenchimento, o nariz é proeminente e na boca semiaberta há quatro dentes brancos, intercalados por espaços em marrom.
MÁSCARA de Tlaloc. cêrca de 1500. Madeira, turquesa, resina, ouro, conchas e cera de abelha, 18,2 centímetrospor 16,5 centímetrospor12,5 centímetros. Museu Britânico, Londres, Inglaterra.

A máscara animada conta o mito

As máscaras e as indumentárias também são utilizadas para recriar mitos e narrativas originárias. É o caso da tradição indiana do catacáli. Considerado pelo mundo ocidental o teatro indiano, o catacáli consiste em uma cerimônia na qual se misturam elementos dramáticos, dança, ritual, rememoração de mitos e reafirmação de alguns valores espirituais da cultura hindu. No palco, considerado um território sagrado pelos intérpretes, acontece o encontro entre homens e deuses. Nele são apresentados temas relacionados às grandes paixões humanas, à luta entre o bem e o mal, às qualidades da honra e da coragem e à relação entre a terra e tudo aquilo que a ultrapassa.

2. Observe esta imagem de uma cena de catacáli. Quais são os elementos da caracterização dos personagens que mais chamam a sua atenção?

Fotografia. Apresentação teatral. À esquerda, um homem veste fantasia com coroa grande e colorida, rosto pintado de verde, olhos destacados em preto e boca com pintura vermelha. Ele veste um vestido vermelho rodado com lenços sobrepostos à frente e calça azul por baixo. Está com os braços estendidos para a frente, as palmas das mãos voltadas para baixo e tem unhas longas na mão esquerda. À direita, uma mulher com o rosto pintado de cor de laranja, olhos destacados com tinta preta, boca destacada em vermelho. Ela usa lenço vermelho na cabeça, tem cabelos pretos até a cintura, e veste blusa  colorida, predominantemente vermelha, com mangas compridas roxas. A saia é larga e plissada, branca. A mulher usa colar, pulseiras e está de pé e segura com a mão esquerda os dedos da mão direita, à frente do corpo.
Apresentação de catacáli em Kerala, Índia. Fotografia de 2019.

Na tradição indiana, não há uma distinção formal entre tea­tro e dança. O ator de catacáli, por sua vez, é considerado um sacerdote: sua função consiste em oferecer às divindades a preciosidade de sua atuação em cena. No catacáli não se usam palavras: para se transfigurar nos personagens, os atores passam por um longo processo de formação no qual aprendem a técnica do gestual codificado do catacáli. A maquiagem que constrói a máscara no rosto dos atores lhes permite criar muitas expressões faciais diferentes. A diversidade de cores presentes nas máscaras também tem a função de demarcar o tipo de per­sonagem que cada ator representa.

Faça no caderno.

Para pesquisar

As máscaras nas festas de diversos países

Após ter estudado alguns exemplos de manifestações artísticas nas quais o corpo se transfigura em outros seres, é o momento de ampliar os seus horizontes e organizar uma pesquisa.

  1. Reúna-se com os colegas em um grupo de até cinco integrantes.
  2. Cada grupo será responsável por eleger uma das manifestações culturais.
    1. Gigantes e dragões (Bélgica e França).
    2. Carnaval de Barranquilla (Colômbia).
    3. Carnaval de Oruro (Bolívia).
    4. Festa dos Mortos (México).
    5. Teatro Nô (Japão).
  3. De acordo com a manifestação escolhida pelo grupo, deve ser organizada uma pesquisa (em internet, livros, filmes, documentários etcétera) que recolha dados sobre:
    1. A história dessa manifestação cultural.
    2. Seus elementos materiais: indumentárias, adereços, máscaras, danças, narrativas, fórmas cênicas etcétera
    3. A relação entre os elementos materiais dessa manifestação cultural e o mundo imaterial: como se dá a conexão entre o corpo e a transfiguração?
  4. Após o desenvolvimento da pesquisa, você e seu grupo devem organizar uma fórma de expor os resultados do trabalho para o restante da turma.
  5. Para concluir, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
    1. Nessas manifestações, as indumentárias estavam ligadas a algum tipo de transformação nas atitudes, nos gestos e nos movimentos de quem as realiza? De que modo?
    2. Em que medida é importante conhecer folguedos, rituais e outras fórmas de expressão tradicionais tanto da sua comunidade quanto de outras? Justifique sua resposta.

Palhaços: protetores e provocadores

3. Observe a imagem. Pela indumentária usada por essas figuras, quem você acha que elas são? Por quê?

Fotografia. Apresentação ao ar livre. Em primeiro plano, à esquerda, uma pessoa com roupa colorida, predominante vermelha com floral amarelo e verde, e máscara branca com detalhes de pintura em azul, com palha pendurada que sai da boca. Ela está agachada, com o joelho esquerdo apoiado no chão e segura nas mãos uma máscara branca com detalhes em vermelho. No centro, ao fundo, uma pessoa em pé, com roupa colorida predominantemente vermelha com floral azul, com camadas de babados verdes, peruca colorida cor de laranja e vermelha, olha para o chão. Ao redor, outras pessoas com figurinos semelhantes. Atrás, pessoas sem fantasia observam a cena. Acima, e bandeirinhas penduradas em fios sob céu azul.
Palhaços de Folia de Reis da Irmandade de Folia de Reis do Novo Horizonte, em São José dos Campos (São Paulo). Fotografia de 2019.

As figuras são palhaços da Folia de Reis, festejo realizado entre 25 de dezembro e 6 de janeiro, principalmente em cidades do Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. A festa remete à jornada dos Reis Magos para encontrar o menino Jesus, na tradição cristã. Nela, os mestres, contramestres, instrumentistas e o bandeireiro vestem seus uniformes. Cada qual tem uma função diferente no cortejo: os primeiros são responsáveis pela organização do cortejo do grupo e pelas músicas, enquanto o último carrega a bandeira – objeto considerado sagrado pelos devotos. Ao vestirem seus uniformes, eles se conectam simbolicamente com as figuras dos Santos Reis, materializada na imagem que compõe a bandeira; isso se expressa com atitudes sérias, contidas, respeitosas e de oração durante toda a jornada. Nos cortejos, os grupos visitam casas e seus presépios, fazendo as loas, versos musicados que contam a jornada dos Reis Magos. Os palhaços são figuras importantes da festa; eles se apresentam com troças e contorcionismos no lado de fóra das casas, fazendo a chamada chula. Em troca das apresentações, os grupos da folia recebem comida, bebida e prendas para ajudar na caminhada.

Ao vestir suas indumentárias, os homens que vivem os palhaços se transfiguram em fórmas mundanas, irreverentes, transgressoras. Na chula, eles provocam o riso e reflexões sobre as más atitudes humanas, burlando a ordem sagrada do festejo. Sua indumentária inclui o cajado e uma bolsa de couro que serve para guardar as doações que recebem durante o trajeto. Segundo relatos, aos palhaços é atribuída a capacidade de tornar visíveis as forças do mal e mantê-las sob controle, tornando-se figuras de proteção da folia. Diz-se que, ao final da festa, se despedem das suas vestes pedindo perdão pelos seus pecados. O sagrado, materializado pela bandeira, e o profano, na chula dos palhaços, caminham juntos nas Folias de Reis, reunindo devotos dos Santos Reis que se mantêm em equilíbrio por meio das atitudes das figuras que as compõem.

Fotografia. Grupo de pessoas caminhando. À esquerda, um homem de turbante dourado e túnica predominantemente azul. Ao lado dele, uma pessoa com camiseta branca e saia de chita estampada segura com as mãos, à frente do rosto, um estandarte com a pintura de Maria e Jesus em seu colo. No centro da imagem, um homem de óculos, com coroa e túnica marrom, com echarpe em tons de marrom e mangas douradas, está de boca aberta e segurando um papel na mão esquerda. À direita, uma mulher, de perfil, segura um estandarte voltado para o homem de óculos. Ela também está de boca aberta e usa camiseta branca e saia com fitas coloridas penduradas. Ao fundo, várias pessoas com flores e fitas nos cabelos caminham na rua seguindo as pessoas com os estandartes.
Festa de Folia de Reis nas ruas de Vitória (Espírito Santo). Fotografia de 2020.

Para experimentar

Criando figuras mascaradas

Ilustração em preto e branco. Uma máscara oval. No topo da máscara, uma coroa. Na testa, cinco círculos pretos lado a lado em curvatura. A sobrancelha direita está voltada para cima e a esquerda, para baixo. Os olhos são ovalados, na horizontal, e preenchidos em preto. O nariz é uma forma preenchida de preto que vem da testa até a altura da boca. Há formas triangulares abaixo dos olhos. A boca é preenchida de preto, e as orelhas são pretas com um círculo branco em cada uma.

Você vai experimentar pesquisar e criar elementos para compor uma figura mascarada.

Para isso, relembre suas pesquisas e experiências vividas ao longo do livro. Você pode retomar as histórias de família, combinando elementos da sua história com a dos colegas, ou recriar histórias da vizinhança, da sua cidade ou região. Use a imaginação para criar sua brincadeira junto com os colegas.

  1. Forme um grupo de cinco integrantes. Cada um de vocês vai retomar a pesquisa individual.
  2. Criem um roteiro de situações para cinco figuras mascaradas (você e seus colegas) no qual a interação entre todos descreva uma narrativa; vocês podem incluir falas ou apenas gestos e movimentos. Figuras mascaradas instrumentistas são bem-vindas, caso você ou algum colega toque algum instrumento.
  3. No roteiro, as figuras devem apresentar o que vai acontecer, desenvolver a situação e, ao terminar, se despedir do público.
  4. Após a escrita do roteiro, cada integrante do grupo deve desenhar sua figura mascarada, prevendo os materiais necessários para a confecção da própria máscara.
  5. Os grupos terão o auxílio do professor para fazer um documento digital ou físico reunindo o roteiro, os desenhos e a lista de materiais para executá-los.
  6. Ao final desta atividade, apresentem para os colegas o roteiro e o desenho das figuras mascaradas criadas por vocês.
  7. Para concluir, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.
    1. De que modo as figuras mascaradas apresentadas remetem às pesquisas feitas nas famílias, vizinhanças, cidades ou regiões?
    2. Que elementos dos roteiros estão relacionados com as tradições pessoais dos integrantes dos grupos?

A máscara na dança butô de cazúo ônu

Se a máscara e a indumentária podem dar vazão ao caráter profano dos rituais, elas também podem fazer com que o corpo entre em contato com o sagrado e até mesmo com a experiência da morte. O artista japonês cazúo ônu (1906-2010), em seu espetáculo de butôglossário My mother [Minha mãe, em tradução livre], evoca as memórias da relação com sua mãe com base na ideia de que essas figuras – as mães – são a fonte inesgotável de energia de nossa vida.

Para ôno, a mãe remete ao útero, órgão feminino responsável pela nutrição do embrião, o primeiro espaço no qual nos movimentamos. Para o artista, o palco em que dançava nada mais era do que uma metáfora do útero materno.

Fotografia. Um homem com o rosto pintado de branco, com destaque azulado nas pálpebras e nas sobrancelhas, preto nos olhos e vermelho na boca. Ele veste um manto preto, com detalhes em amarelo e vermelho, aberto no peito, com os mamilos cobertos. Ele está com a mão direita para cima, semifechada, a palma para cima, e a mão esquerda próxima do pescoço, os dedos curvados. Ele olha para cima com os olhos marejados, a boca aberta mostra parte dos dentes superiores.
MY MOTHER [Minha mãe, em tradução livre]. Direção: tassúmi rijicáta. Interpretação: cazúo ônu. Nova York, Estados Unidos, 1996.

4. Observe a imagem do artista japonês. Que elementos você destacaria nela?

Em muitos de seus trabalhos, ôno usava roupas e adereços geralmente atribuídos ao universo feminino: vestidos, maquiagem, batom, flores no corpo ou nos cabelos etcétera Segundo o dançarino japonês, sua intenção não era imitar as figuras femininas no palco, mas sim criar uma experiência na qual ele pudesse voltar à sua origem mais distante: o útero materno. Ao mesmo tempo, voltar a essa origem remota possibilitava lidar diretamente com a experiência da morte: segundo ele, temos de lembrar que, para que nós pudéssemos ser concebidos, milhões de outros espermatozoides não puderam fecundar o óvulo. O dançarino acreditava que essa experiência de vida e morte estava impregnada em nossa pele desde a concepção e podia ser expressada por meio da dança e do corpo.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Relembre todos os exemplos apresentados ao longo do Sobrevoo. Em qual dos casos a relação com o mundo imaterial mais impressionou você? Por quê?
  2. Quais foram os elementos materiais que mais chamaram a sua atenção ao longo dos exemplos estudados? Por quê?

 

Foco em...

Kazuoôno e o butô

Fotografia. Dançarino Kazuo Ohno, homem com com o rosto pintado de branco, os olhos destacados em preto e a boca em vermelho, semiaberta, que mostra parte dos dentes superiores e inferiores. Ele usa um chapéu redondo, achatado, com plumas, e um vestido bege longo, com babado nas mangas e com cauda. Está em pé, com o braço direito flexionado, a mão próxima ao queixo, e o braço esquerdo estendido para a  à direita, à frente do corpo.
quê tchô fu guêtiçu[Flores, pássaros, vento e lua, em tradução livre]. Coreografia e interpretação: Kazuo ôno. Nova iórque, Estados Unidos, 1993.

Faça no caderno.

1. Com base na imagem, como você imagina os gestos dessa dança? Como eles se relacionam com a indumentária e a máscara escolhidas pelo artista?

O butô foi criado no Japão por tassúmi rijicáta (1928-1986) e cazúo ônu. O marco inicial desse movimento foi a apresentação da dança Kinjiki [Cores proibidas, em tradução livre], de ijicatá, em 1959. Os dois dançarinos trabalharam juntos por muito tempo, porém seus trabalhos eram diferentes entre si. E, com suas particularidades, foram esses artistas que definiram os fundamentos do butô como um tipo específico de dança, valendo-se de suas criações, reflexões, oficinas e treinos.

Na dança butô, o bailarino desenvolve a habilidade de ampliar sua capacidade de percepção. Torna-se capaz de entrar em contato com forças e saberes que lhe possibilitam metamorfosear-se em outro ser humano, animais, plantas e objetos inanimados. O dançarino de butô segue o movimento da vida, segundo a filosofia oriental, dos elementos da natureza e seus fluxos. Essa dança tem seus fundamentos no entendimento de mundo do povo japonês, um conjunto de filosofia, medicina, tradições e religião unidas nas práticas da vida cotidiana. Nessa filosofia, o conhecimento sobre a natureza acontece na relação direta com ela, na vivência dos seus ciclos e fenômenos. A vida e a morte fazem parte desse fluxo e, portanto, são princípios dessa dança.

Para o artista, a fórça criativa e a sabedoria vinham dos mortos e a dança era a busca pela própria vida. O corpo era a conexão entre a alma e o Universo. O movimento nascia quando o dançarino encontrava o silêncio ou o vazio, o ma, termo difícil de traduzir, pois é originariamente um ideogramaglossário , um símbolo, que no zen-budismo tem mais de uma significação.

A dança de cazúo ônu, as suas falas e escritas, assim como os ideogramas, abraçam muitos sentidos sem apontar para um significado determinado. Assim como o exercício da escrita aleatória de palavras, o espetáculo de butô pode provocar diversas sensações e reflexões que nem sempre se conectam entre si do modo como estamos acostumados. As imagens da cena transformam-se, fazendo com que o espectador se envolva com uma percepção de tempo e de fluxo de pensamento diferente da que está acostumado em seu cotidiano.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Como você lida com a experiência do silêncio? Em quais lugares ele acontece?
  2. Como você entende a morte? Segundo sua perspectiva, há alguma relação entre vida e morte? Qual?

Foco no conhecimento

Máscaras, adereços, indumentárias e transfiguração

Como você viu ao longo do Sobrevoo, indumentárias, máscaras e adereços são elementos recorrentes em diversas manifestações culturais, ritos e tradições, sendo parte fundamental dos processos de transfiguração.

Observe a imagem de cazúo ônu se preparando para entrar em cena.

Fotografia em preto e branco. Destaque do rosto de um homem que segura com a mão esquerda uma esponja de maquiagem, a qual passa sobre a bochecha esquerda. Ele está de olhos fechados, o rosto levemente inclinado para cima e os cabelos presos em bobes.
cazúo ônu em processo de preparação para um espetáculo. São Paulo (São Paulo), Fotografia de 1986.

Agora, você vai se aproximar de algumas particularidades desses elementos materiais – máscaras, indumentárias e adereços – e de seu potencial de transfiguração e diálogo com o mundo imaterial.

  1. Esses elementos possibilitam ao usuário brincar de ser outras figuras. Muitas vezes, esses elementos não são considerados meros objetos, mas sim parte viva de elementos imateriais de uma cultura.
  2. O mascaramento é um processo que pode acontecer tanto por meio da utilização da máscara como pela composição completa de uma figura – trajes, maquiagem, adereços etcétera –, como no caso do catacáli.
  1. A máscara possui uma contradição: a princípio, poderíamos pensar que ela cobre o rosto e o corpo de quem a usa. Mas esses elementos materiais, em vez de esconder, exibem cada vez mais o corpo de seu portador. Isso acontece porque, ao se mascarar, uma pessoa pode experimentar estar no lugar de outro ser vivo, espírito, figura mitológica e, assim, acessar vivências e conhecimentos diferentes daqueles do seu cotidiano. Portanto, o mascaramento possibilita uma ampliação de nossos sentidos: quem se transfigura em outro ser passa a poder dizer e fazer coisas que não diria ou faria se estivesse com rosto e corpo expostos.
  2. Esses elementos também proporcionam uma inversão na lógica do dia a dia. Qualquer um pode usar uma máscara, trajes e adereços masculinos ou femininos.
  3. Por ser expressiva e estabelecer pontes com o mundo imaterial, a máscara também obriga o corpo do atuante a se modificar para se ajustar a ela. É importante lembrar que o jogo da máscara envolve um estilo de movimento e expressão mais intenso do que aqueles com os quais lidamos em nosso dia a dia.
  4. Os atuantes mascarados se comunicam, muitas vezes, sem palavras. É por meio de mímica e gestos que o atuante pode criar todo um campo de palavras compreendidas mesmo no silêncio.
  5. Existem máscaras que ocupam o corpo todo dos intérpretes e há máscaras menores e minimalistas.
  6. Alguns tipos de teatro, como o catacáli, utilizam a maquiagem como um elemento do ritual, não apenas por embelezamento. Uma das funções da maquiagem é codificar as expressões do rosto, ou seja, fazer com que a face do atuante se assemelhe a alguma outra coisa. Ela também serve para acentuar algumas de suas expressões.

Clique no play e acompanhe as informações do vídeo.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Como você vê a possibilidade que as máscaras oferecem de ser outra pessoa diferente de você mesmo?
  2. Você já experimentou usar maquiagem? Com qual objetivo? O que ela muda em suas expressões?
  3. Algum tipo de roupa já fez com que você se sentisse diferente e mais livre? Como foi essa experiência?

Processos de criação

Vamos colocar em prática o que você planejou na seção Para experimentar, no Sobrevoo deste capítulo.

Será preciso dividir o trabalho em três etapas:

1. Confecção da indumentária da figura

Você vai montar a indumentária da sua figura seguindo o que foi planejado.

  1. Estudo da figura individual e ensaio do roteiro
    1. Experimente individualmente criar movimentos e ações para a sua figura; utilize, na performance de sua figura, os elementos de dança e teatro estudados anteriormente. Lembre-se também de que sua figura pode tocar um instrumento.
    2. Utilize-se das particularidades elencadas na seção Foco no conhecimento para a criação das movimentações.
    3. Criados os elementos individuais, volte para seu grupo e estude o roteiro escrito junto com os colegas.
    4. Com o auxílio do professor, organize o ensaio do roteiro e, caso seja necessário, faça adaptações para que a narrativa possa ser compreendida pelo público.
  2. Apresentação dos roteiros

Seguindo a orientação do professor, organize o momento para apresentar seu roteiro e assistir à apresentação do roteiro dos colegas.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Foi possível entender as narrativas por meio das atuações? Por quê?
  2. Como as figuras interagiam nos diferentes roteiros?
  3. As características das máscaras e indumentárias estavam conectadas com os movimentos e gestos durante as atuações?

Organizando as ideias

Recorte de quatro imagens, da esquerda para a direita: Imagem 1: detalhe de fotografia. À frente, uma pessoa enfeitada usa chapéu com peruca colorida e brilhosa, poncho colorido com desenhos da bandeira do Brasil e de Pernambuco e de flores. Atrás, uma pessoa caminha  segurando um estandarte vermelho, amarelo e dourado do Condado, composto de flores e do nome na parte de cima, em letras douradas e fundo branco com flores, MARACATU DE BAQUE SOLTO - LEÃO DE OURO; no centro do estandarte, fotografia de um leão; na parte inferior do estandarte, data de fundação e nome nas cores vermelha e dourada. Imagem 2: detalha de fotografia. Máscara de um crânio, azul com detalhes em marrom. Os olhos são dois círculos vazados, sem preenchimento, o nariz é proeminente e na boca semiaberta há quatro dentes brancos, intercalados por espaços em marrom. Imagem 3: detalha de fotografia. Um homem de óculos, com coroa colorida e túnica marrom, com echarpe em tons de marrom e mangas douradas, está de boca aberta e segurando um papel na mão esquerda. Ao lado, uma mulher segura um estandarte  e, atrás, há pessoas com coroas de flores coloridas. Imagem 4: detalhe de fotografia. Um homem com o rosto pintado de branco, os olhos destacados em preto e a boca em vermelho, semiaberta, que mostra parte dos dentes superiores e inferiores. Ele usa um chapéu redondo, achatado, com plumas, e um vestido bege longo, com babado nas mangas e com cauda. Está em pé, com o braço direito flexionado, a mão próxima ao queixo, e o braço esquerdo estendido para a direita, à frente do corpo.

Chegamos ao final deste capítulo, no qual você conheceu, pesquisou e criou figuras mascaradas que, valendo-se de sua indumentária, viabilizam processos de transfiguração.

Para concluir, reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

Faça no caderno.

  1. Quais elementos das suas tradições pessoais foram expressos pelas indumentárias e puderam ser apresentados na criação da sua figura mascarada?
  2. Para você, qual é a relação entre a indumentária que promove a transfiguração e a sua vida cotidiana?
  3. Qual é a importância de vestuários, adereços, máscaras e maquiagens para as manifestações culturais tradicionais?
  4. Quais descobertas você fez ao longo deste capítulo? O que você gostaria de continuar aprofundando?

Glossário

Transfiguração
Ato de se transfigurar, ou seja, mudar radicalmente a aparência, o caráter e a fórma. É um movimento conectado aos sentidos da transformação e da metamorfose.
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Wauja
Os Vauia têm como base de sua cosmologia, ou visão de mundo, uma estreita conexão entre animais, coisas, seres humanos e seres extra-humanos formalizando sua concepção de mundo e tendo na prática do xamanismo sua concretização espiritual.
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Aerofone
Aparelho de ar comprimido que aumenta o volume da voz humana deixando-a audível em grandes distâncias.
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Butô
Dança criada por cazúo ônu e tassúmi rijicáta com fortes influências teatrais. Em japonês, a palavra butô é formada por dois ideogramas: bu [dança] e to [passo]. Entretanto, pode-se também interpretar bu como mão e to como pé, o que expressa bem um aspecto formal do butô, no qual as mãos e os braços se movem com eloquência e os pés ancoram o corpo no chão.
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Ideograma
Símbolo gráfico que representa uma ideia. Nos sistemas de escrita japonês e chinês, por exemplo, os ideogramas são caracteres que, combinados, representam ideias ou objetos.
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