CAPÍTULO 6 Música e vida em transformação

Fotografia em preto e branco. Dez homens , usando calças e casacos de diversos tipos, sorriem; alguns estão em pé sobre mesas de madeira e usam chapéus e óculos de sol; um deles segura um instrumento de percussão.
Integrantes da banda de funk estadunidense Parliament-Funkadelic, em meados de 1974.

A arte produzida em cada época pode manifestar, refletir e estimular os modos de pensar e de conviver do período. Convidamos você a observar essa influência no campo da música e, também, a entender como dessa dinâmica cultural coletiva surgem transformações na linguagem musical.

Ao longo das últimas décadas, a música tem sido um potente alto-falante das reivindicações e esperanças de várias gerações no mundo inteiro. Nesse tempo, a qualidade das produções e sua enorme popularização social converteram essa linguagem em um dos principais pilares culturais da nossa sociedade.

1. Observe a imagem da abertura do capítulo. Como você imagina a música tocada por esse grupo? Você supõe que ela esteja ligada a algum tipo de evento coletivo? Será que ela pode estimular comportamentos específicos?

Versão adaptada acessível

1. Retome a imagem da abertura do capítulo. Como você imagina a música tocada por esse grupo? Você supõe que ela esteja ligada a algum tipo de evento coletivo? Será que ela pode estimular comportamentos específicos?

O grupo que aparece na imagem é conhecido como Parliament-Funkadelic e era liderado pelo músico estadunidense diórdi clíntãn (1941-). Os integrantes desse grupo começaram a atuar na década de 1960, nos Estados Unidos, em um contexto de mobilização de artistas negros em prol da afirmação da identidade afro-americana, contra o preconceito racial e na busca de um lugar no mercado musical. Eles faziam arranjos musicais e performances inovadoras, tocando diferentes vertentes do gênero musical funk.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Em que momentos a música está presente em sua vida?
  2. Você sente que alguma das músicas que ouve influencia de algum modo o seu jeito de ser ou de se relacionar com outras pessoas? Como?

SOBREVOO

Músicas e contextos

Você vai conhecer a seguir produções musicais que dialogam de modo crítico ou inovador com o contexto histórico-cultural em que foram criadas, impulsionando transformações na sociedade ou na própria linguagem musical, seja por meio de mensagens na letra, seja por características da fórma musical.

O impacto estético de A sagração da primavera

Fotografia em preto e branco. Quatro bailarinos, usando figurinos branco com detalhes estampados, estão fazendo movimentos com pés e braços. O primeiro está de perfil com os braços flexionados, um dos pés levantado e uma das mãos acima da altura da cabeça; o segundo está com os joelhos flexionados e os braços junto ao corpo; o terceiro está na ponta dos pés com os braços flexionados e as mãos na altura do rosto, olhando para cima; o quarto está de perfil, com o queixo para cima e as mãos na altura da cintura. Atrás deles, há uma parede estampada.
A SAGRAÇÃO da primavera. Concepção: Igor Istravínsqui. Coreografia: . Théâtre des Champs Élysées, Paris, França, 1913.

Observe a imagem. Ela apresenta a cena de um balé do início do século vinte, cujas música e coreografia tiveram grande impacto no público em sua primeira apresentação.

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Faça no caderno.

1. Escute com os colegas um trecho da primeira parte da música do balé A sagração da primavera: “Augúrios primaveris (dança das adolescentes)”.

  1. Após a escuta, reflita: o que é mais marcante nessa música para você? Alguma característica dela o surpreendeu? Pelas características da música, você imagina algum possível tema para o enredo desse balé?
  2. Veja a seguir a imagem de um trecho da partitura original dessa música. Se considerarmos que esses manuscritos registram parte do processo de criação do compositor, o que a imagem pode informar sobre esse processo?
Fotografia. Partitura com desenhos de notas musicais e anotações nas cores azul e vermelho.
Partitura original de A sagração da primavera (1913), de Igor Istravínsqui. Coleção particular.

A música é de autoria do compositor russo Igor Istravínsqui (1882-1971) e a coreografia do balé A sagração da primavera, em sua primeira versão, foi criada pelo bailarino e coreógrafo vátsláv níijínsqui (1889-1950), também de origem russa.

O espetáculo foi apresentado pela primeira vez em 1913, em Paris (França), e causou um verdadeiro tumulto no teatro. Algumas pessoas da plateia gritavam ofensas, enquanto outras retrucavam ou mandavam elas se calarem. Os bailarinos tentavam continuar com a apresentação, apesar de não conseguirem ouvir bem a música por causa da gritaria do público. Para auxiliá-los, o coreógrafo gritava, dos bastidores, números de referência para a sequência da dança, enquanto uma pessoa da equipe tentava fazer a plateia se calar, acendendo e apagando as luzes do teatro.

4. Você consegue imaginar por que uma apresentação de música e dança causou tamanha reação coletiva? Você já presenciou algo parecido?

Na época, algumas características da obra, cujo enredo narra um ritual sagrado pagão que envolve o sacrifício de uma jovem como oferenda ao deus da primavera, foram associadas a ideias pejorativas sobre o conceito de primitivo e se chocaram com a sensibilidade da sociedade de então.

A sagração da primavera é considerada, atualmente, uma das principais obras musicais do século vinte. Algumas inovações musicais da composição de Istravínsqui eram, no ritmo, partes em que se alternavam grupos de compassos de dois, de três e de cinco tempos e, na harmonia, combinações até então inéditas de acordesglossário e dissonâncias glossário inesperadas. Tudo isso se associava ainda a movimentações incomuns por parte dos bailarinos, como as mãos fechadas e os pés torcidos para dentro, como se pode observar na imagem que inicia esta seção.

5. Escute exemplos de acordes musicais nos quais se destacam a dissonância e a consonância. Em seguida, compartilhe suas impressões com um colega.

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Ainda que o público da época não tenha recebido bem essa obra, a reação acalorada também revela que aquelas pessoas, de modo geral, valorizavam as produções artísticas como manifestação humana e veículo de uma visão de mundo do coletivo em que estavam inseridas.

6. E na sociedade de hoje, de que fórma o público se relaciona com as produções artísticas?

Cantando contestações

Você conhecerá agora uma música de outro estilo, produzida em outra época e em outro local, mas que também se conecta a pensamentos e a sentimentos de uma coletividade em um contexto histórico concreto.

7. Leia a seguir a tradução de trechos da letra da música Ain’t got no – I got life [Eu não tenho – eu tenho vida, em tradução livre]. Como você interpreta esses trechos?

Fotografia. Mulher negra, tem os cabelos presos por uma touca da cor terracota e usa um vestido longo da mesma cor e do mesmo tecido, e dois brincos de argolas grandes. Ela está de perfil, sentada em um banco, com as mãos sobre um piano. Há um microfone acoplado ao piano, próximo de sua boca. Atrás dela, há um cartaz branco onde está escrito "Salute to jazz".
Nina Simone se apresentando no Newport Jazz Festival, em Rhode Island, Estados Unidos, em 1970.

Eu não tenho – eu tenho vida

Eu não tenho casa, não tenho sapatos

Não tenho dinheiro, não tenho classe

Não tenho saias, não tenho casaco

Não tenho perfume, não tenho barba

Não tenho mente.


Não tenho mãe, não tenho cultura

Não tenho amigos, não tenho escolaridade

Não tenho amor, não tenho nome

Não tenho ingresso, não tenho ficha

Não tenho Deus.

Eu tenho meu cabelo, tenho minha cabeça

Eu tenho meu cérebro, tenho meus ouvidos

Eu tenho meus olhos, tenho meu nariz

Eu tenho minha boca, tenho meu sorriso.

Eu tenho meus braços, tenho minhas mãos

Eu tenho meus dedos, tenho minhas pernas

Eu tenho meus pés, tenho meus dedos

Eu tenho meu fígado, tenho meu sangue.


Eu tenho vida, eu tenho minha liberdade

Eu tenho uma vida, eu tenho uma vida e eu vou mantê-la

Eu tenho uma vida, e ninguém vai tirá-la

Eu tenho uma vida.

AIN’T got no – I got life. Intérprete: Nina Simone. Compositores: , Gerome ráguini e Djeimes rádô. In: Intérprete: Nina Simone. [sem local]: RCA Victor, 1968. 1 disco sonoro. Faixa 8. [Tradução livre feita pelos autores desta obra.]

Nessa interpretação da canção, a cantora Nina Simone (1933-2003) uniu, de modo sugestivo, partes de duas canções – Ain’t got no [Eu não tenho] e I got life [Eu tenho vida] –, em um contexto no qual nos Estados Unidos se vivenciava marcante presença de racismo e discriminação em relação a pessoas negras.

Tropicalismo e transformações

Na mesma época em que Nina Simone desenvolvia seu trabalho musical e sua militância pela causa dos negros nos Estados Unidos, alguns músicos brasileiros produziam canções que problematizavam questões sociais e protestavam contra o regime político vigente.

Alguns desses músicos também impulsionaram transformações no modo de fazer música popular no Brasil, a partir da incorporação de elementos musicais nacionais e internacionais.

Uma das inovações mais destacadas foi a utilização da guitarra elétrica na música popular brasileira, junto de instrumentos afro-brasileiros e instrumentos orquestrais. Além disso, os artistas compunham letras musicais com estruturas pouco convencionais, que dialogavam com a produção poética da época e geralmente traziam mensagens ligadas ao contexto histórico ou contestações. Muitas vezes essas contestações se manifestavam de modo implícito, disfarçadas nas letras, para não serem barradas pela censura da época.

Capa de álbum. Na lateral esquerda, escrito na vertical, está o título do álbum: Tropicalia. Na lateral direita, também escrita na vertical, está a continuação do título do álbum: ou Panis et circencis. Centralizada na capa, há a fotografia de nove pessoas. Em primeiro plano há um homem usando cavanhaque e roupa estampada; ele está sentado no chão, segurando um retrato em preto e branco dentro de uma moldura. Atrás dele, sentadas em um banco branco, há três pessoas: um homem de pernas cruzadas, usando óculos, bigode, camisa e calça, segura um penico branco e, sob ele, um prato; uma mulher com cabelos curtos, usando vestido amarelo estampado; e um homem de pernas cruzadas usando blazer e calça. Atrás deles há quatro pessoas de pé: um homem segurando um baixo, usando blazer verde; um homem com cabelos enrolados, segurando um retrato em branco e preto dentro de uma moldura; uma mulher com cabelos ruivos compridos, usando blazer verde; um homem com cabelos lisos na altura dos ombros segurando uma guitarra; e um homem usando terno segurando uma bolsa marrom.
Capa do álbum tropicália ou . Intérpretes: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. São Paulo: Philips Records, 1968.

Com os festivais de música, então produzidos por emissoras de tê vê, esses músicos tornaram-se muito populares entre o grande público e, juntando-se a artistas de teatro, artes visuais e cinema, organizaram-se coletivamente em um movimento cultural que ficou conhecido como Tropicalismo.

O álbum produzido coletivamente em 1968, intitulado ou Pânis ét circêncis, foi um dos principais manifestos musicais desse movimento.

Na capa do disco, reproduzida na página anterior, você pode ver os artistas que participaram desse trabalho e que até hoje são grandes nomes da música brasileira: Gilberto Gil (1942-), logo à frente; sentados logo atrás dele estão o maestro e arranjador Rogério duprá (1932-2006) segurando um penico, Gal Costa (1945-) e Torquato Neto (1944-1972). Mais atrás, em pé, aparecem Arnaldo Baptista (1948-), Caetano Veloso (1942-), Rita Li (1947-), Sérgio Dias (1950-) e, na extrema direita, Tom Zé (1936-). Capinam (1941-) e Nara Leão (1942-1989), que também participaram do álbum, mas não puderam comparecer no dia da realização da fotografia, são representados pelos retratos segurados por Gilberto Gil e Caetano Veloso.

A expressão – que também é o título de uma das faixas do álbum – é uma variação na escrita da expressão em latim panem et tchirtchenses, que significa “pão e circo”, e foi o nome pelo qual ficou conhecida uma política adotada no antigo Império Romano, que, resumidamente, consistia em fornecer alimento e diversão à população para diminuir seu espírito crítico diante das condições de vida e mantê-la minimamente acomodada e sem se revoltar.

  1. Considerando a explicação sobre a política do panem et tchirtchenses, qual relação pode ser estabelecida entre o álbum e o contexto político e social da época?
  2. Quais artistas da atualidade abordam questões semelhantes às dos tropicalistas?
Ilustração. Desenho de um caderno branco aberto, que corresponde ao ícone do Para ler.

Você pode conhecer mais sobre o Tropicalismo no livro: gúlo, Carla; gúlo, Rita; vanútchi, Camilo. Jovem Guarda e Tropicália. São Paulo: Moderna, 2016.

O livro explica como a Jovem Guarda e a Tropicália revolucionaram a música brasileira nas décadas de 1960 e 1970.

Ilustração. Desenho de um óculos 3D, que corresponde ao ícone do Para assistir.

Se possível, assista ao filme-documentário: Uma noite em 67. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Rio de Janeiro: Video Filmes, 2010. (85 minutos).

O documentário resgata a final do 3º Festival de Música Popular Brasileira, realizada em outubro de 1967 e considerada um marco do Tropicalismo.

Para pesquisar

As músicas do álbum ou Pânis ét circêncis

Nas faixas do álbum ou Pânis ét circêncis é possível perceber os aspectos mencionados anteriormente neste capítulo: a presença de instrumentos ou arranjos musicais até então pouco comuns; estruturas inovadoras nas letras das músicas; conteúdos críticos relacionados a questões políticas e sociais. Sugerimos então que, para aprofundar seu conhecimento sobre a produção musical da época, você realize pesquisas sobre esse álbum, os artistas e as músicas presentes nele. Além de auxiliar na identificação de aspectos como os citados, esse estudo proporcionará novas informações, estimulando novas perguntas sobre a época em questão e sobre a relação entre música e vida coletiva.

  1. Com o professor e os colegas, identifique cada uma das faixas presentes no álbum.
  2. Em seguida, a turma deverá se dividir em 12 grupos. Cada um ficará responsável pela pesquisa a respeito de uma das canções.
  3. Algumas possibilidades de pesquisa sobre cada faixa são: quem é o compositor, quem canta, quem fez o arranjo, que características inovadoras ela apresenta, como foi a recepção do público na época do lançamento, quais ritmos ou gêneros musicais se percebem no arranjo, que instrumentos são utilizados, além de outros aspectos que forem considerados relevantes durante a pesquisa. Inclua também comentários sobre suas percepções e impressões a respeito da música pesquisada.
  4. Algumas possíveis fontes de pesquisa são:
    1. Textos, áudios, podcasts ou vídeos referentes ao assunto disponíveis na internet, incluindo entrevistas com os artistas ou estudiosos do assunto. Uma opção para o momento da pesquisa é digitar em sites de busca o nome da canção, seguido de: “análise da letra” ou “análise da música”.
    2. Livros que abordam a produção musical da época em questão.
    3. Pessoas que vivenciaram ou estudam aquela época e possam ser entrevistadas.
  5. Escrevam um relatório organizando de modo sintético as informações encontradas que escolherem para compartilhar com a turma.
  6. Cada grupo fará então uma explanação sobre a canção escolhida, na qual unirá a apreciação da canção com a apresentação do relatório da pesquisa.
  7. Para concluir, conversem com os colegas e com o professor sobre as pesquisas e as apresentações de cada grupo.

Reflexões e inovações na obra de Raul Seixas

Fotografia em preto e branco. Busto de homem com cabelos encaracolados, barba comprida e óculos, usando uma jaqueta. Ele segura uma guitarra e olha para o braço dela.
Raul Seixas se apresentando em um festival em Iacanga São Paulo. Fotografia de 1984.

Críticas sociais e leituras contundentes sobre o contexto histórico-cultural estão presentes também na obra do artista baiano Raul Seixas (1945-1989), que começou a ficar conhecido na década de 1970 e é muito ouvido até hoje. Além de misturar instrumentos e gêneros musicais, incorporando, por exemplo, a guitarra – típica do rock-and-roll – em ritmos nordestinos, em suas canções esse artista também desenvolveu reflexões sobre a vida em sociedade, como é possível observar nas músicas “Ouro de tolo” ou “O dia em que a Terra parou”.

O interesse de Raul Seixas por literatura, filosofia e questões existenciais se reflete em sua produção como letrista. Ele mesmo chegou a declarar que sua intenção inicial era de se tornar escritor – a música foi o meio que ele encontrou para dizer o que pensava. Ele foi um dos precursores do rock brasileiro, tendo formado, em 1962, a primeira banda a usar guitarra elétrica na Bahia. Entre suas músicas mais conhecidas estão , “Eu nasci há dez mil anos atrás”, “Maluco beleza”, “Medo da chuva” e “Tente outra vez”.

Ilustração. Desenho de um óculos 3D, que corresponde ao ícone do Para assistir.

Para conhecer mais sobre Raul Seixas, assista, se possível, ao filme-documentário:

Raul – o início, o fim e o meio. Direção: Uálter Carvalho e Evaldo Mocarzel. São Paulo: Denis Feijão/Globo Filmes/tê vê Cultura, 2012. (120 minutos).

Documentário sobre a vida e a obra de Raul Seixas, considerado um dos maiores ícones do rock brasileiro.

Foco na História

1968 – Manifestação política e musical da juventude

Fotografia. Vista aérea de um trecho de uma manifestação. Na imagem, dezenas de pessoas estão em uma rua; algumas delas seguram cartazes. Em um dos cartazes há o texto: Contra a repressão.
Passeata dos Cem Mil, na cidade do Rio de Janeiro, em 1968.

O ano de 1968 foi repleto de mobilizações de artistas e de estudantes em todo o mundo. Na fotografia, pode-se ver um detalhe da maior manifestação contra a ditadura militar ocorrida no Brasil, que ficou conhecida como Passeata dos Cem Mil, organizada depois que um estudante foi assassinado em um restaurante universitário na cidade do Rio de Janeiro, antigo estado da Guanabara, atual estado do Rio de Janeiro.

A passeata contou com a participação de estudantes, mães e pais, intelectuais, religiosos, poetas e músicos, entre outros segmentos da população.

Nos Estados Unidos, o assassinato do ativista político Mártin Lúter King (1929-1968) intensificou o movimento pelos direitos civis dos afrodescendentes. Foi nessa ocasião que Nina Simone compôs e cantou, em homenagem a esse líder, a canção “Why? (The king of love is dead)” [Por quê? (O rei do amor está morto), em tradução livre], que questionava como seria a mobilização dos negros depois daquela morte.

A França também foi palco de protestos e manifestações protagonizadas por estudantes e trabalhadores, que pediam reformas na educação, nas políticas trabalhistas e, em geral, uma alternativa ao conservadorismo e aos valores e padrões de vida tradicionais da sociedade capitalista ocidental.

Entre as frases presentes nas faixas e nos muros de Paris durante as manifestações estava Il est interdit d’interdire [É proibido proibir!]. Sua tradução foi usada pelo cantor Caetano Veloso como título e refrão da música É proibido proibir, apresentada naquele ano em um festival televisivo de música, que contou também com um acalorado discurso do cantor contra o conservadorismo do público.

Fotografia em preto e branco. Diversas pessoas caminham de mãos dadas em uma rua. Algumas seguram faixas. Ao redor, há prédios e árvores.
Manifestação de estudantes no Quartier Latin, em Paris, França, 1968.

Nesse contexto cultural, o rock-and-roll vai assumindo protagonismo sendo considerado um gênero musical ligado à contestação e à quebra de padrões de comportamento. O reflexo disso no Brasil é visto na presença da guitarra elétrica como fator marcante na transformação estética promovida pelo Tropicalismo, assim como na contundência de artistas como Raul Seixas, um dos pioneiros do róqui nacional, que gravou seu primeiro disco justamente em 1968.

Um ano antes, o grupo inglês The Beatles havia lançado o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Clube béndi, considerado, por suas inovações relacionadas a técnicas de gravação e incorporação de elementos de diferentes vertentes musicais, o disco de rock-and-roll mais influente da época e que foi uma das referências para os tropicalistas na produção, também em 1968, do álbum Tropicália ou Pânis ét circêncis.

No fim daquele ano, o governo militar decretou o Ato Institucional no 5, que, entre outras restrições aos direitos políticos e de expressão, estabeleceu a censura aos meios de comunicação e às produções artísticas de música, teatro e cinema. Alguns músicos foram presos e expulsos do Brasil por escreverem letras com críticas à ditadura, mas continuaram produzindo fóra do país. Outros, como o músico e compositor Chico Buarque de Hollanda, usaram nomes falsos para assinar suas canções, pois a censura proibia qualquer publicação com seu nome.

Naquele momento histórico, a juventude se afirmou como um grupo protagonista e ativo, capaz de promover transformações na vida coletiva por meio de manifestações, atitudes e, especialmente, por meio da arte.

Para experimentar

Criando versos

Leia a seguir a letra da música “Prelúdio”, de Raul Seixas:

Prelúdio

Sonho que se sonha só

É só um sonho que se sonha só

Mas sonho que se sonha junto

É realidade

PRELÚDIO. Compositor e intérprete: Raul Seixas. In: guitá. Intérprete: Raul Seixas. [sem local]: Philips, 1974. 1 disco sonoro. Faixa 10.

Tomando como referência o assunto e a estrutura da letra da música, sugerimos que você também escreva quatro versos. Procure desenvolver nesse processo alguma reflexão sobre a relação entre ideias ou desejos individuais e ideias ou desejos coletivos. Siga estas etapas:

  1. Reúna-se com os colegas em um grupo de quatro integrantes.
  2. Conversem sobre a relação entre o que é individual (ideias, crenças, ideologias, desejos, necessidades etcétera) e o que pode ser considerado coletivo.
  3. A partir dessa conversa, escolham ideias, palavras e frases para construir os quatro versos. Uma possibilidade é cada pessoa do grupo criar um dos versos como continuidade do que veio antes.
  4. Em seguida, compartilhem as criações com os colegas em uma roda em que um integrante de cada grupo leia os seus versos para toda a turma.
  5. Para concluir, conversem sobre os versos de cada grupo.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Qual das músicas aqui apresentadas você achou mais interessante? Por quê?
  2. As obras apresentadas neste capítulo influenciam ou propõem, de vários modos, transformações na vida coletiva. Como você vê o papel da indústria fonográficaglossário nesse processo?

Foco em...

Nina Simone

Fotografia em preto e branco. Uma menina negra com cabelos presos em duas tranças laterais, usando vestido com botões. Ela está sentada em uma mureta com as mãos juntas sobre o colo. Ao fundo, há um muro, árvores e uma pequena casa.
Nina Simone aos 8 anos em tráion, nos Estados Unidos. Fotografia de 1941.

Eunice quétlin uêimãn é o nome de batismo da musicista mostrada na fotografia. Ela nasceu em 21 de fevereiro de 1933, na cidade de tráion, na Carolina do Norte (Estados Unidos), filha de Méri. , empregada doméstica e ministra de uma igreja metodista, e de . , marceneiro e autônomo na área de limpeza a seco. Na fotografia, ela está com 8 anos de idade.

Desde pequena, ela demonstrou grande talento ao piano, acompanhando o coro de sua igreja. Ao perceber esse talento, os patrões de sua mãe se dispuseram a ajudá-la financeiramente com seus estudos musicais, e Nina começou, então, a fazer aulas com uma professora particular, que foi sua grande incentivadora.

Com aproximadamente 11 anos de idade, realizou seu primeiro recital. Na época, ainda vigoravam oficialmente em alguns estados políticas segregacionistas e, durante o recital, seus pais, negros, tiveram de ceder os lugares onde estavam sentados a pessoas brancas. Nina então disse que só voltaria a tocar se seus pais voltassem à primeira fila. Ela já manifestava, naquele momento, uma postura crítica e combativa em relação às desigualdades entre negros e brancos que marcaria sua carreira.

Seguindo seus estudos de piano erudito, frequentou a renomada escola Juilliard, em Nova York, e, ao tentar obter uma vaga no Instituto Curtis de Música, na Filadélfia, foi recusada por discriminação racial. Isso abalou suas expectativas de ser a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos, mas não a impediu de continuar se apresentando. Pelo contrário, para se manter e custear suas aulas de piano, começou a tocar e a cantar em bares. Foi a partir de então que se tornou conhecida como pianista e cantora de jazz com o nome artístico que escolheu: Nina Simone. Simone por causa do nome de uma atriz que admirava, e Nina porque era o apelido carinhoso que ganhou de um namorado.

Após o assassinato de um ativista político negro, e dias depois de quatro crianças negras serem mortas em um atentado racista a uma igreja, o sentimento de Nina sobre o que era ser mulher negra em seu país mudou definitivamente. Sua música não tinha mais como ser a mesma. A partir daquele momento, ela passou a dedicar cada vez mais sua atuação musical à causa negra e a questões culturais, políticas e raciais envolvendo os afrodescendentes.

Durante uma entrevista no auge de sua carreira, respondendo sobre como via sua relação com os jovens negros, Nina Simone destacou a importância de estimular a curiosidade e o interesse deles para se conscientizarem sobre suas origens e sobre si mesmos.

Fotografia em preto e branco. Destaque para o rosto de uma mulher com cabelos curtos. Ela está com os olhos fechados e a boca aberta próximo a um microfone.
Nina Simone cantando em um comício realizado antes da terceira manifestação das Marchas de Selma a Montgomery, em prol dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Fotografia de 24 de março de 1965.
  1. Para conhecer um pouco mais da expressão musical e política de Nina Simone, leia, na página seguinte, a tradução da letra de uma canção que foi interpretada por ela: “I wish I knew how it would feel to be free” [Eu gostaria de saber como é a sensação de ser livre, em tradução livre].
  2. Você já sentiu algo semelhante ao que a letra da canção diz? Comente.
  3. A quem você acha que se direcionam os quatro últimos versos da primeira estrofe da letra?

Eu gostaria de saber como é a sensação de ser livre

Eu gostaria de saber

como é a sensação de ser livre

Eu gostaria de poder quebrar

todas as correntes que me prendem

Eu gostaria de poder dizer

todas as coisas que eu gostaria de dizer

Dizer em alto e bom som

para o mundo todo ouvir

Eu gostaria de poder compartilhar

todo amor que há em meu coração

Remover todas as barreiras

que nos mantêm separados

Eu gostaria que você soubesse

o que significa ser quem eu sou

Então você veria e concordaria

que todo homem deveria ser livre


Eu gostaria de poder dar

tudo que eu posso dar

Eu gostaria de poder viver

tudo que eu posso viver

Eu gostaria de poder fazer

todas as coisas que eu posso fazer

E quando eu chegasse no limite

começaria tudo de novo


Bem, eu gostaria de poder ser

como um pássaro no céu

Quão doce seria

se eu descobrisse que posso voar

Oh, eu voaria alto até o sol

e olharia lá embaixo para o mar

Então cantaria porque eu sei

Então cantaria porque eu sei

Então cantaria porque eu sei

Eu saberia como é a sensação

Oh, eu saberia como é se sentir livre

Oh, eu saberia como é a sensação

Sim, eu saberia

Oh, eu saberia

Como é a sensação

Como é a sensação

De ser livre

I WISH I knew how it would feel to be free. Intérprete: Nina Simone. Compositor: In: SILK & Soul. Intérprete: Nina Simone. [sem local]: Beemegê Music, 2006. 1 cedê. Faixa 6. [Tradução livre feita pelos autores desta obra.]

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Você acha que Nina Simone pode ser considerada um exemplo para todos que atualmente sofrem com diferentes tipos de preconceito e exclusão? Por quê?
  2. Já houve em sua vida algum momento de mudança no qual você sentiu que uma música teve papel importante? E o inverso, algum acontecimento significativo da vida coletiva fez você passar a ouvir um tipo diferente de música, ou ter vontade de fazer algum tipo de música?

Foco no conhecimento

Estruturas musicais

Quando se fala em transformações musicais ao longo da história, geralmente essas transformações estão ligadas à estrutura musical. Essa expressão se refere ao modo como estão organizadas as partes de uma música. Em alguns casos, cada uma dessas partes é caracterizada por uma melodia e pode ser chamada de tema. Para diferenciar os temas, é comum usar letras: tema A, tema B, tema C e assim por diante, conforme a ordem em que são tocados.

Em gêneros de música popular, como rock-and-roll, samba e MPB, as músicas, de modo geral, são mais concisas e é mais fácil identificar e acompanhar a alternância ou a repetição dos temas. Algumas das canções desses gêneros têm um refrão, ou seja, um tema que se repete entre outras partes da música e geralmente com a mesma letra. Além disso, nas partes que antecedem o refrão, a letra costuma ser diferente a cada vez, mas os temas melódicos geralmente se mantêm os mesmos, às vezes com pequenas variações.

Você se lembra de alguma música que seja parecida com a descrição? Ela vale para alguma faixa do álbum tropicália ou Pânis ét circêncis, que foi pesquisado pela turma? Se ouvir esse álbum, preste atenção também aos arranjos do músico Rogério duprá, que, mesmo nas canções com estruturas mais simples, enriquece a composição como um todo.

Repetições de um mesmo tema, intercaladas pela apresentação de outros, como nas músicas com refrão, são comuns também em um tipo de estrutura musical que tem suas origens na Europa do século catorze, nas interações entre música e poesia. Essa fórma musical é chamada de rondó e, desde então, seguiu sendo usada por muitos compositores, inclusive em músicas instrumentais.

1. Escute um exemplo de uma música instrumental em fórma de rondó, a (3º movimento da “Sonata para piano nº 11”), do músico austríaco vôlfigan Amadeus môzar (1756-1791). Após a escuta, converse com os colegas. Vocês conseguiram identificar o tema principal, com suas repetições? E os outros temas apresentados entre elas?

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2. Escute agora uma gravação apenas dos temas dessa música, sem os detalhes do arranjo ao piano. A percepção das partes da música é diferente ouvindo-a dessa maneira? Por quê?

Clique no play e acompanhe a reprodução do Áudio.

Vejamos agora um pouco sobre a estrutura da música do balé A sagração da primavera, um dos exemplos do Sobrevoo. É importante notar que se trata de um balé, em que música e dança contam juntas uma história. Toda a estrutura está organizada em função do enredo, que narra um momento na vida de uma comunidade tribal em que uma jovem será sacrificada no ritual de sagração da primavera. A música está estruturada em duas grandes partes: a primeira, dividida em sete partes menores, e a segunda, em seis. Veja a seguir:

1. A adoração da terra

Introdução / Augúrios primaveris (dança das adolescentes) / jôgo do rapto / Danças primaveris / jôgo das tribos rivais / Cortejo do sábio / Dança da terra.

2. O grande sacrifício

Introdução / Círculo místico das adolescentes / Glorificação da eleita / Evocação dos antepassados / Ritual dos antepassados / Dança sacrificial.

Nesse exemplo, cada passagem da história contada na peça, além de ter temas melódicos específicos em alguns momentos, é caracterizada por diferentes escolhas de ritmo, timbre e orquestração, ou seja, diferentes combinações de instrumentos que tocam juntos ou isoladamente, bem como diferentes maneiras de tocá-los. Em músicas assim, com muitas partes, também é comum que sejam retomados temas que apareceram em partes anteriores. Isso ocorre, por exemplo, na parte “Círculo místico das adolescentes”, que remete a temas da parte anterior, “Danças primaveris”. Se possível, procure essa música na internet e escute-a, percebendo com atenção suas várias partes.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. O que você achou de ouvir e de analisar as músicas dessa maneira, considerando sua estrutura? Tente fazer isso com outras músicas que você conhece e de que gosta.
  2. Na sua opinião, pensar nas estruturas musicais pode ajudar a compor músicas? Por quê?

Processos de criação

Que tal compor uma canção que traga uma mensagem para um dos coletivos dos quais você faz parte?

  1. Reúna-se com os colegas em um grupo.
  2. Reflitam juntos sobre as seguintes questões:
    1. De que coletivos sociais vocês fazem parte?
    2. O que gostariam de dizer para algum desses coletivos?
  3. Quando tiverem decidido o que querem dizer e para quem, comecem a compor a canção.
  4. Vocês podem começar de diferentes maneiras. Vejam a seguir alguns exemplos:
    1. Escrevendo a letra, para depois decidir como cantá-la.
    2. Escolhendo um gênero musical para a composição (rock-and-roll, samba, rap, funk, sertanejo etcétera).
    3. Definindo a estrutura da música (ela terá um tema A e um tema B? Terá um refrão?).
    4. Escolhendo instrumentos musicais para fazer o acompanhamento.
  5. Experimentem até descobrir a melhor fórma de cantar juntos e, então, ensaiem.
  6. Se possível, façam registros sonoros dos ensaios. Com isso, além de terem um registro da produção da turma, poderão ouvir outras vezes as canções para avaliar e fazer melhorias.
  7. Compartilhem a canção com os outros grupos e ouçam a canção deles. Em seguida, conversem sobre esse processo de criação.

Faça no caderno.

PARA REFLETIR

Reflita sobre as seguintes questões e compartilhe suas respostas com os colegas e com o professor.

  1. Como foi tentar se expressar por meio de uma música? Você sente que conseguiu passar a mensagem que queria? Por quê?
  2. Foi possível escolher coletivamente o que expressar e como compor a música? Que dificuldades e facilidades surgiram nesse processo?

Organizando as ideias

Mosaico de fotografias. Composto de um recorte vertical de quatro fotografias. Da esquerda para a direita: fotografia em preto e branco de bailarino usando figurino branco com detalhes estampados; ele está de perfil com os braços flexionados, um dos pés levantado e uma das mãos acima da altura da cabeça; uma mulher tem os cabelos presos por uma touca da cor terracota e usa um vestido longo da mesma cor e do mesmo tecido, e dois brincos de argolas grandes; ela está de perfil, sentada em um banco, com as mãos sobre um piano, com a boca próxima a um microfone; capa de álbum em que, em primeiro plano, há um homem usando cavanhaque e roupa estampada; ele está sentado no chão, segurando um retrato em preto e branco dentro de uma moldura; atrás dele, sentada em um banco, há uma mulher com cabelos curtos, usando vestido amarelo estampado; e mais atrás, de pé, há um homem usando blazer verde, um homem com cabelos enrolados, segurando um retrato em branco e preto dentro de uma moldura, uma mulher com cabelos ruivos compridos, usando blazer verde, e um homem com cabelos lisos na altura dos ombros segurando uma guitarra; fotografia em preto e branco de homem com cabelos encaracolados, barba comprida e óculos, usando uma jaqueta; ele segura uma guitarra.

Neste capítulo, você viu exemplos de como a música pode estar envolvida em processos coletivos. A partir dessa abordagem, você pôde conhecer músicas de diferentes estilos, épocas e locais e experimentar criar musicalmente como fórma de se expressar.

Para concluir, converse com os colegas e com o professor sobre as seguintes questões:

Faça no caderno.

  1. De tudo o que foi visto neste capítulo, o que foi mais marcante para você? Por quê?
  2. Algo mudou, depois desse estudo, no seu modo de ver a relação entre música e vida coletiva? Por quê?
  3. algo que não foi possível compreender muito bem ou que você gostaria de estudar mais?
  4. Quais descobertas você fez ao longo deste capítulo? O que você gostaria de continuar aprofundando?

Glossário

Acorde
Conjunto de três ou mais notas musicais geralmente tocadas ao mesmo tempo, mas que também podem ser arpejadas, ou seja, tocadas imediatamente uma após a outra. A variação desses agrupamentos de notas estimula diferentes sensações ao longo de uma música, conduzindo o discurso musical.
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Dissonâncias
Sensação auditiva que pode ser traduzida como tensão, inquietação e necessidade de que algo se resolva. É causada por algumas combinações de notas. É o oposto de consonância, a sensação auditiva que pode ser associada a ideias de estabilidade, repouso e resolução.
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Indústria fonográfica
Conjunto de empresas que realizam a gravação de músicas e sua venda em diferentes tipos de mídia, como CDs e discos de vinil, ou em formato digital, como o ême pê três.
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