Capítulo 2 

Vida à vista – leitura e apreciação de reprodução de pintura, canção e crônica

Fotografia em preto e branco. Local com paredes à esquerda e à direita. E muro baixo em ambos os lados com bicicletas encostadas na esquerda e na direita. Mais ao fundo, à esquerda, duas crianças, vistas de costas, perto uma da outra. À frente, uma criança com o corpo no ar, com os braços apontados para baixo para em direção a local com o mar. Em segundo plano, morros escuros e céu claro.
The Brazilian Coast 4, realizada em Ilhabela, São Paulo, 1990. Toninho cúri.

Quem é?

Fotografia. Imagem do fotógrafo Toninho Curry visto dos cotovelos para cima com o corpo levemente inclinado para a esquerda, olhando para frente. ele é calvo na parte superior da cabeça e tem os cabelos grisalhos, usa camisa de gola branca e colete marrom por cima.
Retrato de Toninho cúri.

Nascido em 1953, em São José do Rio Preto (São Paulo), Antonio José cúri ganhou sua primeira máquina fotográfica em 1970: uma iachica mati profissional. Seu mestre foi o fotógrafo rio-pretense Nestor Brandão.

Toninho cúri já teve seu trabalho exposto em vários países e participou de mais de 200 salões nacionais e internacionais de fotografia, ganhando muitos prêmios. É um dos poucos fotógrafos brasileiros a ter um trabalho no acervo do Musé francé de la fotografi, na cidade francesa de brives.

Converse com a turma

1. O que essa imagem está “contando” e expressando para você? O que mais chama a sua atenção nela? Por quê?

2. Leia o boxe Quem é?, de Antonio José Cury.

3. Em que ponto aproximadamente o fotógrafo se posicionou para poder fazer esse enquadramento?

4. Leia: “A imagem, uma vez capturada, no instante seguinte, já não é mais a mesma. O fotógrafo, mais do que o conhecimento das técnicas de fotografia, luz e enquadramento, precisa ter feeling. Afinal de contas, como dizia Cartiê Brêsson: ‘fotografar é captar a vida em um laço’”.

Toninho cúri. A captura do momento. Disponível em: https://oeds.link/cGa5zi. Acesso em: 29 abril 2022.

Que relações você estabelece entre essas reflexões e a fotografia?

5. Você já tinha parado para pensar como é possível olhar dêsse jeito diferente para o cotidiano? Em sua opinião, o que é preciso exercitar para aprender a ver as coisas do dia a dia dêsse modo artístico?

6. Também na literatura existem aqueles que “olham” artisticamente para o cotidiano e o colocam em discussão em seus textos. Isso acontece muito especialmente no gênero crônica. Você já leu textos dêsse gênero? Lembra-se de algum? O que acha da oportunidade de ler e discutir crônicas com seus ou suas colegas?

O que você poderá aprender

  1. O que é básico no gênero crônica?
  2. Como outras artes também podem, com seus recursos, fazer “crônica”?
  3. Como participar de uma roda de leitura, escolhendo e compartilhando crônicas?

Leitura 1

Você e os ou as colegas vão trocar conhecimentos prévios e experiências. Fique atento ou atenta e interessado ou interessada nas contribuições de cada um ou uma!

Converse com a turma

  1. Você já foi à praia?
  2. Lembra-se de como foi a experiência de ter visto o mar pela primeira vez? O que sentiu? Como foi?
    • Se nunca foi, como imagina que seria vê-lo pela primeira vez?
  3. Que palavras você pode listar para indicar elementos naturais de uma paisagem de praia?
  4. Você conhece as canções praieiras de Dorival Caymmi? O que já sabe sobre elas? Lembra-se de alguma ou algumas?

Quem é?

Fotografia. Compositor Dorival Caymmi, com cabelos, sobrancelhas e bigode brancos. Na foto, veste camisa de gola e mangas curtas em azul com estampas com padrão verde e branco. Ele está sentado, visto da cintura para cima, olha para a direita, sorrindo. Ao fundo, cadeiras brancas de praia.
O compositor baiano em 1997.

Dorival Caymmi (1914-2008) é um dos principais nomes da música popular brasileira. Nascido à beira-mar, em Salvador, Bahia, aprendeu a tocar violão sozinho. Inspirado na oralidade da cultura dos afrodescendentes, desenvolveu um estilo pessoal de cantar e compor, marcado pela espontaneidade nos versos, pela riqueza melódica e por um olhar interessado na paisagem e nos costumes locais.

Vale a pena ouvir!

Canções praieiras, de Dorival Caymmi. Gravadora Odeon, 1954.

Capa de álbum fonográfico. Moldura na parte superior e à esquerda em preto com o título CANÇÕES PRAIEIRAS POR DORIVAL CAYMMI.  À direita ilustração de pessoa agachada vista de frente, com contornos em preto, chapéu triangular, camiseta verde e bermuda cinza, a sua frente dois peixes. À direita da pessoa, objeto arredondado. Em segundo plano, uma pessoa em pé, de chapéu triangular branco, camiseta verde e saia laranja. Ao fundo, formas retangulares em amarelo, laranja, azul e cinza.
Observe a capa e, depois de ler a sinopse, se pergunte: por que ouvir as canções dêsse álbum pode me interessar? Procure ouvir em sites as canções praieiras, especialmente “Saudade de Itapoã”.

Em seu primeiro disco, de 1954, o compositor baiano Dorival Caymmi lançou um gênero único, a canção praieira, que o marcou como cronista dos pescadores, dos banhistas e de todos que se admiram com a beleza do mar.

O mar de Caymmi é imprevisível, sedutor e indomável. Em “Saudade de Itapoã”, por exemplo, ele canta a praia de lindas areias. Em “Lenda do Abaeté”, há a descrição de como as pessoas interagem na lagoa escura, quando, à noite, “O luar prateia tudo/Coqueiral, areia e mar”.

No mar de Caymmi, a morte surge serena (“É doce morrer no mar”), misteriosa (“A jangada voltou só”) ou como lamento: “Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos/Nas ondas do mar” (“O mar”).

Canções praieiras está entre os melhores álbuns da música brasileira.

Fonte: https://oeds.link/2DCiNf. Acesso em: 6 outubro 2018.

O texto a seguir é uma canção; por isso, para você atribuir sentidos, é fundamental considerar não apenas os versos, “a letra” como se costuma dizer, mas também a música. Com a orientação e o apoio dô ou dá professor ou professora, é importante que busque estratégias para ouvi-la, antes de conversar com os ou as colegas na seção Primeiras impressões. Você também pode fazer isso com autonomia, pesquisando em sites musicais seguros, combinando as palavras-chave “saudade” + “Itapoã” + Caymmi. Durante a escuta, preste atenção na melodia e na entonação que é dada às palavras nos versos cantados.

Vinheta de seção. Contorno de um clipe.

Clipe

Segundo antigos pescadores, a palavra itapuã (também grafada itapoã ou itapoan), de origem tupi, significa “a pedra que ronca”.

Saudade de Itapoã

Coqueiro de Itapoã, coqueiro

Areia de Itapoã, areia

Morena de Itapoã, morena

Saudade de Itapoã me deixa


Oh vento que faz cantigas nas folhas

No alto dos coqueirais

Oh vento que ondula as águas


Eu nunca tive saudade igual

Me traga boas notícias daquela terra toda manhã


E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã

Coqueiro de Itapoã, coqueiro

Areia de Itapoã, areia

Morena de Itapoã, morena

Saudade de Itapoã me deixa

Me deixa, me deixareticências

CAYMMI, Dorival. Saudade de Itapoã. Disponível em: https://oeds.link/U9NjAL. Acesso em: 26 fevereiro 2022.

Primeiras impressões

  1. Que palavras usadas na canção permitem concluir que Itapoã é uma paisagem de praia?
  2. qual verso sugere ou quais versos sugerem que o eu lírico está longe de Itapoã?

Assim como o narrador é uma voz inventada para contar uma história, nos poemas existe um “eu poético”, ou “eu lírico”, isto é, a voz que se expressa no poema.

3. Que relações você estabeleceria entre a melodia, a entonação, o ritmo e o que você respondeu na questão 2?

O texto em construção

Organize-se em duplas e converse com ô á colega sobre as questões a seguir. Elas foram pensadas para você perceber recursos da linguagem e procedimentos poéticos da canção. Ouça com atenção a fala dôs ou dás colegas. Se não entender algo, pergunte. Anote no caderno as conclusões a que chegarem, para depois discutir com a turma as possibilidades de resposta.

Figuras de linguagem sonoras

A repetição intencional de sons consonantais (nesse caso, falamos em aliteração) ou vocálicos (assonâncias) pode tornar o verso sinestésico, de fórma que o leitor imagine e de certa maneira sinta o que sugere o verso.

1. Releiam os versos seguintes em voz alta, prestando atenção nos sons representados pelas letras destacadas.

Versão adaptada acessível

Atividade 1.

Releiam os versos seguintes em voz alta, prestando atenção nos sons representados pelas letras “z” e “s”.

Oh vento que faz cantigas nas folhas

No alto do coqueiral

Oh vento que ondula as águas

  1. Que relações vocês estabeleceriam entre a repetição dêsses sons com o que está sendo dito nos versos?
  2. Que sensações e imagens vocês associariam a esses versos?

2. Qual dos elementos da natureza citados na canção é personificado como um confidente, um amigo do eu lírico? O que você observou nas falas do eu lírico para chegar a essa conclusão?

Personificação ou prosopopeia é uma figura de linguagem em que se atribuem ações e sentimentos humanos a seres inanimados ou a animais.

Diferentes linguagens criando paisagens

3. Você percebeu como, a partir de uma paisagem bastante comum, cotidiana nas regiões de praia, a canção vai sugerindo histórias, emoções, sentimentos, ampliando os sentidos do que é visto? Como a letra da canção é um gênero que, além de pertencer à música, também pertence à poesia, isso foi feito por meio de recursos próprios dessas artes.

A poesia é a arte de compor versos, em que as palavras são combinadas de fórma que sugiram imagens verbais e efeitos sonoros, para expressar ideias, estados de alma, sentimentos, impressões. Para isso, ela se vale de recursos como: ritmo, rima, aliterações, assonâncias, número de sílabas poéticas, linguagem figurada. Diferentes gêneros da arte, da literatura e da cultura se valem da poesia, como: rap, cordel, limerique, poema, canção, jongo.

Já na fotografia de cúri, a escolha do enquadramento e da luz permite um “olhar poético” sobre o lugar em que ele vive. Podemos dizer que nesses textos, utilizando recursos próprios de cada linguagem, os artistas criaram um “olhar de cronista” sobre algo cotidiano, mas de jeito surpreendente, sugerindo muitas relações de sentidos com as paisagens. Vamos conhecer uma crônica que também trará um olhar assim, graças a um trabalho criativo e intencional com recursos da linguagem verbal. Leia silenciosamente, “escutando-se por dentro”: o que você sente e imagina enquanto lê?

Leitura 2

Quem é?

Fotografia em preto e branco. Escritor Rubem Braga, um homem sentado em um sofá, com o corpo para a esquerda. Ele olha para frente, ao longe. Ele tem cabelos brancos, usa casaco de mangas compridas com botões e calça,  com o braço esquerdo sobre o braço do sofá. Ao fundo, vista parcial de escada e janela.
O cronista em foto de 1988.

Rubem Braga (1913-1990) foi um jornalista e escritor nascido em Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo). Para o professor Miguel Sanches Neto, até o século 19 a crônica era vista como um gênero literário menor, e os escritores dedicavam-se pouco a esse tipo de texto. A obra de Rubem Braga conferiu um novo status à crônica, ao incorporar lirismo, poesia e leveza ao gênero.

Fonte: https://oeds.link/LdrVep. Acesso em: 26 fevereiro 2022.

Mar

1. A primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maréglossário , que é menor que o mar, e a marolaglossário , que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.

2. Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de larga, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o marreticências

3. Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer – como aquela caravela de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mãoreticências Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo arealglossário branco e dava boa-noitereticências Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búziosglossário crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer – que ainda não sabe dizer.

4. Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbasglossário , mar das cantigas do catambáglossário , mar das festas, mar terrível daquela morte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangueglossário reticências A primeira vez que saí sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti fôrça e perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cara e a corrente do “arrieiroglossário ” me puxava para fóra, não gritei nem fiz gestas de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e oleoso, lambendo o batelãoglossário . Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a vida, uma vida de bamboleioglossário de canoa, de paciência, de fôrça, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homemreticências

5. Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivoglossário , fraco, sem paciência, mais corajoso que audaciosoglossário , incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorsoglossário , como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o marreticências

Julho, 1938.

BRAGA, Rubem. Mar. ín: BRAGA, Rubem. Crônicas do Espírito Santo. 3. edição São Paulo: Global, 2015.

Vinheta de seção. Contorno de um clipe.

Clipe

Fotografia. Dentro do mar azul, duas caravelas, com tentáculos finos na ponta inferior do corpo e parte superior do corpo arredondado. Ambas vão para a direita e têm o corpo azul com partes translúcidas.
Caravela na Praia de Boa Viagem, Recife (Pernambuco), 2007.

A caravela (Fisália fisalis) não é uma água-viva, embora lembre uma. Ela flutua na água, parecendo um balão inflado de cor azulada, e pode medir até 30 centímetros. Seus tentáculos produzem um veneno capaz de paralisar e matar os peixes e de causar queimaduras e lesões graves aos seres humanos.

Fonte: https://oeds.link/wUt4BF. Acesso em: 26 fevereiro 2022.

Vinheta de seção. Contorno de um clipe.

Clipe

Fotografia. Vista do alto, local com piso cinza, com pessoas em pé formando um círculo. Mulheres com vestidos compridos em vermelho e cinto branco e homens com camisa rosa, calça e sapatos brancos. Ao centro da roda, uma mulher e um homem em pé, um de frente para o outro.
Grupo Jongo da cidade de Piquete (São Paulo). Foto de 2007.

Catambá, também conhecido como jongo ou caxambu, é uma dança trazida por negros bantos escravizados que se fixou no sudeste do país. Um dos elementos mais marcantes do jongo é o ponto, fórma poética e musical expressa nos versos cantados pelos jongueiros, enquanto dançam em roda.

Primeiras impressões

1. Que imagens e sensações você relacionaria ao texto?

2. Que fases da vida do narrador organizam a passagem do tempo na narrativa de suas experiências de vida junto ao mar? Que palavras e expressões você observou para concluir isso?

3. Releia o primeiro e o segundo parágrafos.

a. Com base em que o mar é descrito no primeiro parágrafo?

b. E no segundo parágrafo?

4. Das experiências de vida do narrador junto ao mar, qual chamou mais a sua atenção? Por quê? Releia a passagem do texto em voz alta e comente-a.

5. Além das experiências pessoais, que experiências coletivas de trabalho e de manifestação cultural o narrador associa ao mar?

6. O que se pode deduzir sobre o momento presente do narrador: ele vive experiências semelhantes às que viveu antes? O que você observou no texto para concluir isso?

7. Releia este trecho e, depois, leia o boxe a seguir.

“Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o marreticências

A crônica na literatura brasileira é bastante variada, mas, de modo geral, seus textos são curtos, em comparação a um conto ou a um romance, e trazem um “olhar artístico” para o cotidiano, isto é, para o nosso dia a dia, recortando dele temas, acontecimentos, e trabalhando-os no texto de jeito surpreendente, mobilizando emoções, reflexões e sentimentos na experiência no leitor. Assim, é um gênero em que o escritor exercita a arte de tratar de coisas simples, de modo profundo, em textos breves.

De que modo o trecho destacado no último parágrafo pode ser interpretado como um jeito metafórico de o cronista falar sobre o próprio ato de fazer crônica?

Versão adaptada acessível

Atividade 7.

• De que modo o trecho “um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar...” pode ser interpretado como um jeito metafórico de o cronista falar sobre o próprio ato de fazer crônica?

O texto em construção

Organize-se em duplas e converse com ô á colega sobre as questões a seguir. Elas foram pensadas para você perceber recursos de linguagem, procedimentos narrativos e poéticos que provocam os efeitos de sentidos que você vivenciou na leitura do texto. Anotem no caderno as soluções a que chegarem, para depois discutirem com a turma as diferentes possibilidades de respostas.

  1. Que substantivos de uma mesma “família”, isto é, com um mesmo radical, foram usados pelo menino que conhecia o mar para tentar descrevê-lo?
    1. Reveja sentidos possíveis para essas palavras no glossário. Elas são adequadas para falar do mar?
    2. O uso dessas palavras ajudou o narrador a criar uma boa imagem do mar naquele momento? Por que provavelmente isso ocorreu?
  2. Releia este trecho do texto.

“Era qualquer coisa de larga, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul.”

a. As palavras destacadas têm sentidos específicos?

Versão adaptada acessível

Atividade 2, item a.

As palavras "qualquer coisa de larga" e "inesperado" têm sentidos específicos?

  1. Elas nos ajudam a imaginar como o narrador se sentiu naquele momento?

3. Compare os dois trechos a seguir.

um “O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava.”

dois “As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho.”

  1. Qual dessas definições do mar (um ou dois) você considera mais poética? Por quê?
  2. Qual delas você relacionaria ao conteúdo do boxe a seguir, sobre sinestesia? Explique.

Sinestesia

É um jeito figurado de utilizar a linguagem em que são usadas intencionalmente palavras para sugerir sensações ligadas aos sentidos: tato, audição, olfato, paladar e visão.

c. Releia em voz alta o trecho a seguir, prestando atenção na alternância entre sílabas fracas e sílabas fortes e nas pausas:

“Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o marreticências

d. Como o ritmo ajuda a expressar o que está sendo dito?

Ritmo

Se você prestar atenção nas batidas de seu coração, na sua pulsação, vai perceber que possuem ritmo e que isso varia conforme a situação em que você estiver. O mesmo acontece com sua fala, alternando sons e silêncios, entonações, no tempo. Tudo tem um ritmo. Na música, ele se constrói pela alternância de sons. Na dança, pela alternância de movimentos. Na poesia, o ritmo nasce principalmente da alternância de sílabas fortes e fracas, mas também de outros aspectos, como as repetições de sons, palavras e versos. As palavras escritas apenas sugerem um ritmo. É a leitura, com atribuição de sentido ao todo do texto, que vai dar vida e movimento aos ritmos de um texto.

4. Releia este trecho em voz alta.

“Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza.”

a. Você percebe como a repetição de algumas palavras também ajuda a dar um ritmo ao texto? Que palavras são essas?

Anáfora

É a repetição intencional de uma mesma palavra em início de frases e versos.

b. Em que outras passagens do texto você percebe o uso da anáfora?

  1. Retome o boxe de definição de poesia (página 41), com que você trabalhou quando analisou aspectos da canção “Saudade de Itapoã”.
    1. Você diria que nessa crônica o autor também se valeu de recursos da poesia? Explique.

Prosa poética

É quando se busca trabalhar aspectos da poesia em um texto que é predominantemente em prosa.

Vale a pena ler!

200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga. Rio de Janeiro: recór, 2013.

Capa de livro. Fundo azul-claro, com título do livro na parte superior à direita: Duzentas crônicas escolhidas. Ocupando todo o espaço da capa nome do autor em azul e rosa, nos contornos e no preenchimento: RUBEM BRAGA.
Observe a capa e, depois de ler a sinopse, se pergunte: por que esse livro pode me interessar? Procure em bibliotecas, na internet etcétera fórmas de ter acesso a ele!

Com uma linguagem sensível e poética, Rubem Braga capta, em 200 crônicas escolhidas, flagrantes da vida cotidiana que ele próprio viveu ou testemunhou. O livro traz seus melhores textos, produzidos entre 1935 e 1977, numa escolha feita pelo próprio autor, baseada na seleção original do amigo Fernando Sabino. São lembranças de cenas da Segunda Guerra, quando Braga foi repórter na frente de batalha. Recordações de momentos marcantes de sua infância e juventude com os amigos. Casos de amor e amizade com mulheres fantásticas que marcaram sua vida. Cenas que retratam o convívio diário com pessoas, choques de opiniões e interesses, o dia a dia do trabalho de um jornalista que precisava escrever sua crônica diária para sobreviver. Rubem Braga nunca deixou de escrever regularmente crônicas para jornais e revistas, constituindo um verdadeiro fenômeno: o de ser o único escritor a conquistar um lugar definitivo na nossa literatura exclusivamente como cronista. Abordando sempre assuntos do dia a dia, falando de si mesmo, de sua infância, mocidade, primeiros amores, impregnava tudo que escrevia de um grande amor à vida – a vida simples, não sofisticada, dos humildes e sofredores. Tinha predileção especial pelas coisas da natureza, tomando frequentemente como tema o mar, os animais, as árvores. Não apenas as suas crônicas de amor e exaltação à mulher, mas também as que dedicou a passarinhos, borboletas, cajueiros, amendoeiras e pescarias são das mais belas páginas de nossa literatura.

Oficina de leitura e criação – Roda de leitura com outras crônicas de Rubem Braga

Condições de produção

O quê?

Vamos fazer uma roda de leitura, algo bastante comum em bibliotecas, centros de cultura, escolas e outros espaços em que leitores querem compartilhar suas leituras. Nela, as pessoas sentam-se em círculo ou semicírculo, para ler, ouvir e conversar sobre textos. Aquele que vai ler faz uma curadoria, isto é, uma escolha cuidadosa e criteriosa, de um texto que lhe seja bem significativo e prepara uma leitura bem expressiva e caprichada. Depois, os participantes conversam sobre essa leitura.

Ilustração. Mesa em marrom, com livro aberto e à  esquerda da imagem, outro livro fechado em tons de vermelho e rosa. Atrás da mesa, homem à esquerda, sentado, visto da cintura para cima com  cabelos encaracolados pretos e camiseta amarela, de braços cruzados. À direita da imagem, mulher vista da cintura para cima, cabelos castanhos longos com uma faixa verde e blusa de mangas curtas e calça em diferentes tons de azul.

Para quem?

Para a própria turma, que vai poder curtir outras crônicas de Rubem Braga e conhecer outras estratégias de composição do autor, como: crônicas que combinam a voz do narrador com diálogos diretos entre as personagens; variação de visões sobre questões do cotidiano: crônicas mais líricas e poéticas, como a que você leu, mais engraçadas, ou mais críticas e opinativas. Como o autor escreveu mais de 15 mil crônicas, você e seu parceiro ou sua parceira de atividade terão muitas opções para escolher a que mais surpreender a ambos ou ambas pelo trabalho de linguagem com que o texto aprofunda um tema, um acontecimento, uma notícia, uma paisagem, enfim, algum aspecto cotidiano.

Como?

Para escolherem a crônica:

Formem duplas de trabalho. Durante toda a atividade, sejam parceiros ou parceiras de verdade, ouvindo um ao outro, trocando ideias e negociando decisões. Lembrem-se de que a atividade precisa ser prazerosa e trazer aprendizagens para ambos ou ambas! Consultem bibliotecas locais e ou ou sites seguros dedicados à literatura, catálogos de bibliotecas, comentários e resenhas de outros ou outras leitores ou leitoras, entre outras possibilidades. Para isso vocês poderão combinar buscas de palavras-chave como: crônica mais Rubem mais Braga.

Procurem ler vários textos, com calma, prestando atenção nos sentimentos, sensações, emoções que provocam em cada um ou uma de vocês, conversando a respeito, buscando analisar o trabalho de linguagem que é feito para causar essas sensações: a escolha das palavras, se há uso de figuras de linguagem (personificação, aliteração, anáfora, comparação, metáfora etcétera).

Observem como o narrador se comporta, se sua visão sobre o que narra é mais lírica, expressiva, ou mais afastada dos acontecimentos, o que ele procura provocar no leitor e de que estratégias faz uso para causar esse impacto. Se houver falas das personagens, como vocês imaginam essas falas? O que observaram para imaginar isso?

Para preparar sua leitura

Vale a pena ouvir!

Vale a pena pesquisar na internet a leitura que o ator Paulo Autran faz da crônica “Duas meninas e o mar”, de Rubem Braga, combinando essas palavras na busca. Na escuta, observem atentamente as estratégias de que ele se vale.

Texto escolhido? Agora é hora de relê-lo para vocês mesmos ou mesmas, várias vezes, curtindo cada passagem. Quando sentirem que já dominaram bem o texto, comecem a ensaiar leituras em voz alta, escolhendo fórmas de divisão que sejam significativas para os sentidos do texto (presente e passado, narrador e personagem, entre outras possibilidades). Busquem sugerir sentidos pelo ritmo, pela ento­nação de voz, dando “vida” ao texto. Para isso, vocês podem ouvir leitores mais experientes.

Oficina de leitura e criação

Preparem também uma breve fala de introdução, contando para os ou as colegas o título da crônica escolhida, quando e onde (livro, jornal) ela foi publicada originalmente e por que a escolheram, destacando o que mais chamou a atenção de vocês em relação ao jeito como a lin­guagem é trabalhada no texto.

Com base nas orientações dô ou dá professor ou professora, compartilhem o texto com a turma toda antecipadamente. ele ou ela combinará se isso acontecerá por meio eletrônico ou se vocês o publicarão em um drive, em um arquivo colaborativo.

Ilustração. Menino em pé, cabelos castanhos encaracolados, par de óculos de grau, camiseta rosa, bermuda azul, par de tênis azul e branco. O menino segura com a mão direita o um livro de capa azul, com texto: RUBEM BRAGA e aponta com o dedo indicador na mão esquerda para o livro. Ele olha para frente sorrindo. Ao fundo, vista parcial de lousa branco com moldura azul.

Durante as rodas de leitura

Além de compartilhar a experiência de leitura de vocês, tenham interesse e abertura pela escolha dôs ou dás colegas, para que eles ou elas se sintam seguros ou seguras em poder dividir o que prepararam e para que vocês possam aprender mais com as escolhas deles ou delas.

Enquanto acompanham a leitura, seguindo silenciosamente o texto, observem como os ou as estudantes vão construindo sentidos pela leitura, os recursos de voz que eles ou elas usam para dar entonação, ritmo e expressividade. Anotem individualmente no caderno:

  • O que mais me chamou a atenção nessa crônica escolhida por meu ou minha colega? Por quê?
  • O que percebi que meu ou minha colega fez em sua leitura para sugerir sentidos?
  • Que passagem eu gostaria de escolher para sugerir outra entonação, outro ritmo, outras possibilidades de sentido?

Durante todo o processo, usem a ficha de apoio à produção textual – sim, a leitura de vocês é uma produção de texto oral.

Avaliando

Tudo pronto? Revise o texto, usando a tabela a seguir, com os critérios para produção e avaliação da curadoria de crônica e preparo da leitura para ser apresentada na roda. Se necessário, corrija problemas, melhore trechos. ô á professor ou professora também trará contribuições para você melhorar ainda mais sua produção.

Ficha de apoio à produção e à avaliação da curadoria de crônica e preparo da leitura para ser apresentada na roda

1. Adequação à proposta

• Negociamos a escolha de uma crônica que é significativa para a dupla? Disponibilizamos o texto previamente para a turma poder acompanhar nossa leitura, como combinado com o(a) professor(a)?

2. Atenção às características estudadas do gênero e ao trabalho de linguagem feito nele

a) Conseguimos identificar o estilo da crônica? Ela é mais lírica, engraçada, crítica (opinativa)?

b) Percebemos as vozes que a compõem: há apenas a voz do narrador, que pode citar outras falas, ou há também falas de personagens?

c) Conseguimos perceber que aspecto do cotidiano é explorado na crônica: é um tema, um acontecimento, uma notícia, uma paisagem ou que outro aspecto do dia a dia?

d) Percebemos o trabalho de linguagem que é feito para dar um tratamento literário e surpreendente a esse aspecto?

e) Relacionamos a escolha das palavras, o uso de figuras de linguagem (como personificação, aliteração, anáfora, comparação, metáfora etc.) e sentidos?

3. Quanto à leitura ensaiada

a) Conseguimos dar um “tom” para nossa leitura coerente com o estilo da crônica (mais lírica, engraçada, crítica)?

b) A divisão que planejamos para a leitura ficou coerente entre nós? É interessante, contribui para os sentidos?

c) Usamos bem a entonação, o ritmo, as pausas?

4. Quanto ao preparo para a roda de leitura

a) Preparamos um comentário de introdução à crônica escolhida? Ele contextualiza bem os(as) ouvintes, contendo: título da crônica escolhida, quando e onde (livro, jornal) ela foi publicada originalmente e por que foi escolhida, com destaque para o que mais chamou a nossa atenção em relação à maneira como a linguagem é trabalhada no texto?

b) Estamos bem seguros e tranquilos, com a leitura do texto suficientemente ensaiada?

5. Quanto à colaboração e à comunicação na atividade em dupla

• Buscamos nos entender de modo respeitoso e interessado na aprendizagem colaborativa, ouvindo um ao outro com interesse e abertura para a opinião dos(as) colegas?

O que levo de aprendizagens deste capítulo

  1. O que você achou de conhecer diferentes procedimentos artísticos com os quais se cria um olhar de cronista para a realidade?
  2. Você percebeu como, nas diferentes linguagens com que trabalham, os artistas Toninho cúri (com a fotografia), Dorival Caymmi (com a poesia e a música, no gênero canção) e Rubem Braga (com a literatura) extraem temas do cotidiano e os ampliam, com sugestões de sentidos surpreendentes?
  3. Como foi a experiência de descobrir diferentes crônicas de um mesmo autor, nas rodas de leitura?
  4. Com base na reflexão que você fez e no boxe O que você poderá aprender, que abre o capítulo, escreva no caderno um parágrafo contando as principais aprendizagens que você teve, o que mais gostou de ter feito e como e por que as atividades que realizou contribuíram para você curtir crônicas com mais autonomia.

Galeria

Uma galeria para chamar de sua: registrando suas experiências

Ao longo do sexto ano você deve ter produzido uma galeria com suas leituras. Ano letivo novo, galeria de cara nova!

E se você não teve a oportunidade de fazer sua galeria, fique tranquilo, poderá começar agora: estilize um caderno já usado ou abra um arquivo digital. Nele, você registrará suas descobertas e experiências no campo artístico-literário.

Lendo uma crônica com autonomia

Que tal ver o mar pelos olhos de outro cronista, ampliando suas leituras de crônicas? No texto a seguir, duas crianças acreditam que é só atravessar o mar para ir parar no continente africano! A aventura é contada a partir do “olhar” de uma delas. Observe a estratégia de organização do texto, que combina a fala do narrador com diálogos diretos entre as personagens, como se a cena estivesse acontecendo no momento mesmo em que a lemos.

Quem é?

Fotografia. Escritor Antonio Prata, homem visto dos ombros para cima, com a cabeça para a direita. Ele tem cabelos curtos pretos e barba rala, usa óculos de grau e camiseta preta. Ele  segura um microfone na mão direita e a palma da mão esquerda, aberta para cima.
O escritor em 2016.

O paulistano Antonio Prata (1977) é escritor, roteirista e cronista.

Na coletânea de crônicas Nu, de botas (Companhia das Letras, 2013), da qual foi extraído o texto a seguir, o autor trabalhou com seu cotidiano de menino, mas não se trata de um narrador adulto que relembra acontecimentos. A voz narrativa é a da própria criança, que vai descobrindo as coisas ao seu redor e dando ao leitor a experiência incrível de olhar de fórma especial para o dia a dia, como é próprio da crônica, mas de um jeito ainda mais especial, porque experimentamos um olhar infantil. O resultado são textos engraçados, líricos, surpreendentes.

África

— Se você for sempre reto aqui, sabe aonde chega?

— Aonde?

— Na África.

— Mentira!

— Sério. Meu tio que me contou.

Eu e o Fábio Grande ficamos um tempo calados, os pés na areia e os olhos no horizonte, recordando tudo o que já havíamos visto em livros, filmes e programas de televisão sobre o Continente Negro.

— Tem leão na África — eu disse.

— Tem girafa também.

— E rinoceronte.

Depois de mais alguns segundos de silêncio contemplativo, o Fábio propôs:

— Vamos lá?

Estávamos na ilha de Itaparica, com a família do meu vizinho. Fábio ia pra lá todo ano. Sabia subir em coqueiro e pegar siri com a mão, andava descalço na areia sem queimar o pé e dava cambalhota na água sem tampar o nariz: me passava segurança suficiente, portanto, para que eu topasse a expedição transatlântica.

Não sabíamos a que distância estávamos de nosso destino — o tio do meu amigo havia dito apenas que “indo sempre reto aqui” dava na África, sem entrar em maiores detalhes —, então resolvemos nos precaver: passamos em casa para pegar as pranchas de isopor e, após vinte minutos e um rolo inteiro de fita-crepe, conseguimos colar uma garrafa de Lindoia na frente de uma delas. Tudo pronto.

Estava claro que ultrapassar as ondas seria a parte mais difícil: se conseguíssemos vencer aquela espessa barreira de espuma, o resto da jornada — a se julgar pela aparente calma do mar aberto — seria bico. Enquanto Fábio decidia, compenetrado, o melhor lugar para atravessarmos a arrebentação, ao seu lado, quieto, eu aguardava instruções.

Entramos na água no ponto escolhido, saltei sobre a prancha e comecei a bater os braços freneticamente. Fábio me aconselhou a descer e irmos andando até onde désse pé, evitando assim uma precoce assadura nos mamilos. Obedeci. Chegamos ao fundo, subimos nas pranchas e passamos a remar com os braços. A primeira onda se aproximou e Fábio tentou me explicar, às pressas, a técnica do “joelhinho”, procedimento usado pelos surfistas para passar a arrebentação. Parecia simples, na teoria, e assim que a onda nos alcançou, tentei imitá-lo, mas algo não saiu exatamente conforme o planejado: foi como se eu tivesse sido jogado dentro de uma betoneira cheia de mingau; o mundo ficou bege e confuso, girei muitas vezes, ralei o ombro no fundo, entrou água no meu nariz, areia na boca e, quando dei por mim, estava sentado no rasinho, com os olhos ardendo e uma franja de sargaço tapando a visão.

Não demorou e o Fábio apareceu com a minha prancha. A garrafa d’água tinha ido embora, levando consigo todo o aparato de fita-crepe e uma quantidade razoável de isopor. Breve debate: voltar para a casa e prender nova garrafa d’água — dessa vez com fita isolante — ou seguir adiante? Humilhado com o meu caldo, insisti para seguirmos em frente: tínhamos acabado de chupar picolés e não pretendíamos mesmo passar muito tempo na África — era ver uns leões, elefantes e rinocerontes e voltar a tempo pro lanche. O Fábio concordou e, antes de retomarmos os trabalhos, me ensinou, com calma, os procedimentos relativos ao “joelhinho”.

Galeria

Voltamos à arrebentação. Não capotei, como da outra vez, mas tampouco atravessava as ondas feito uma foca; cada uma que vinha me arrastava alguns metros para trás. Eu lutava bravamente, contudo. De tempos em tempos nos olhávamos, cúmplices como soldados avançando sobre território inimigo. Até que, depois de uma eternidade, com os olhos vermelhos, a barriga ralada e os mamilos em chamas, o que parecia impossível aconteceu: passamos a arrebentação. Estávamos em mar aberto. A calma e o silêncio aumentaram a ansiedade: a África, que ali da praia poderia ser apenas um sonho, era agora quase tangível. Algumas braçadas e estaríamos na savana. Quando eu contasse na escola, ninguém iria acreditar.

Antes de seguirmos adiante, breve debate sobre o que fazer para nos protegermos da fauna hostil. Como nenhum de nós se lembrava de ter visto imagens dos grandes felinos no mar, parecia seguro observar leões, leopardos e panteras de dentro d’água. Quanto aos tubarões, o combinado foi manter os pés para cima e bater os braços rapidamente — a prancha de isopor se encarregaria de proteger nossos troncos.

Aos poucos, fomos deslizando azul adentro. Os sons da praia foram ficando cada vez mais distantes: o frescobol, a buzina do sorveteiro, vozes de crianças, a matraca do vendedor de tapioca, alguém que gritava “Fábio! Antonio! Antonio! Fábio!”. Opa.

Com água nos joelhos, a mãe do meu amigo andava de um lado pro outro, abanando os braços. Parecia muito alterada. Estava acompanhada pelo tio do Fábio, a avó e mais uma meia dúzia de banhistas. Todos nos acenavam. Será que algo de grave havia acontecido em terra? Talvez ela estivesse brava por termos pegado a fita-crepe sem pedir. Ou seria a garrafa de Lindoia?

Notei, então, que alguns surfistas entravam no mar e vinham remando vigorosamente em nossa direção. Era óbvio: ao nos verem cruzar a arrebentação e seguir reto, compreenderam nosso projeto e decidiram vir junto. Fábio me sorriu, eu sorri de volta e ficamos ali, olhando pro horizonte e esperando os retardatários para seguir com a expedição.

PRATA, Antonio. África. ín: PRATA, Antonio. Nu, de botas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Ilustração. Vista geral do mar azul. À frente quatro pessoas vistas de costas, entre elas, dois homens com boné, regata e bermuda vermelhos e cruz branca nas costas, um mais à esquerda, com os dois braços erguidos e um mais à direita, com o braço direito para cima. Perto deles, à esquerda, uma mulher de cabelos longos castanhos presos para trás, com bermuda e biquíni lilás e braços para cima.  Na ponta direita, pessoa de cabelos ruivos curtos e encaracolados, com camiseta verde, bermuda azul e branca. Ela segura uma prancha rosa com o braço direita e o braço esquerdo levemente flexionado para cima. No centro na imagem, onda branca e ao fundo em segundo plano, duas crianças sentados em cima de pranchas de surfe. À esquerda da imagem, menino de cabelos castanhos, sem camiseta e bermuda vermelha, sobre prancha laranja. À direita, menino de cabelos castanhos, bermuda vermelha sobre prancha azul. No alto, sol amarelo.

Refletindo sobre sua leitura

Organize sua compreensão do texto refletindo sobre estas questões:

  1. O texto joga com duas perspectivas: a da criança e a dos leitores.
    1. Na perspectiva da criança, por que os adultos vão atrás deles depois que eles passam das ondas?
    2. E nós, leitores, o que podemos inferir: Por que a mãe está agitada e por que os surfistas entram no mar atrás das crianças?
    3. Para você, em qual passagem o autor conseguiu expressar bem o imaginário das crianças, como se você estivesse mesmo presenciando as conversas entre elas?
  2. Com base no que você refletiu, registre em sua galeria:
    • Eu recomendo a leitura dessa crônica para outros leitores? Por quê?
    • O que mais chama a minha atenção no modo como ele trabalha a narração dos acontecimentos?
    • O que esse modo de narrar causa, desperta, provoca em mim durante a leitura?
Fotografia. Mesa comprida com crianças sentadas escrevendo em seus cadernos e outros materiais na mesa. Em primeiro plano, menina vista da cintura para cima, cabelos pretos trançados, penteados para trás, com um coque para cima, vestida de camiseta amarela e jardineira jeans. Mais ao fundo, outras duas crianças vistas desfocadas.

LiTERatitudes

Do texto escrito para o texto recriado por meio de sua leitura

Que tal convidar um ou uma colega ou um ou uma familiar para fazer com você uma leitura do texto?

Para isso, explique a ele ou ela o que você compreendeu da crônica e combine o que quer causar nos ouvintes.

Faça a voz do narrador e as falas diretas dele como personagem. Atribua ao(à) convidado(a) as falas da personagem Fábio.

Ensaiem bem, usando a entonação, as pausas, o ritmo para “dar vida ao texto”, como se as crianças estivessem mesmo dialogando e acreditando no que estavam vivendo.

Quando tiver alcançado um bom resultado, grave, com o apoio de um responsável, e compartilhe em suas redes sociais com um pequeno comentário de introdução, recomendando a escuta do texto. Para isso, use o que você registrou em sua galeria.

Peça a opinião das pessoas: Do que elas mais gostaram em sua leitura? Por quê? Anote também em sua galeria como foi a experiência de ser escutado ou escutada por outros ou outras leitores ou leitoras.

Compartilhando sua experiência de leitura com outros(as) leitores ou leitoras

Você já aprendeu que há redes sociais em que leitores partilham suas experiências de leituras? Vamos relembrar: por meio delas, é possível vivenciar práticas, como organizar virtualmente “estantes”, compartilhando livros já lidos, manifestando gostos e preferências; publicar comentários e resenhas; fazer posts com citações dos livros lidos; interagir com outros leitores e até mesmo trocar livros.

O post a seguir traz a resenha que um leitor faz do livro em que a crônica que você leu foi publicada. Leia-o, conhecendo a opinião dele sobre a leitura do livro:

Ilustração. Vista do alto de um quarto. À esquerda, cama com lençol verde, travesseiro e cobertor  verde-escuro e uma mesa de apoio com livro laranja. À direita, uma escrivaninha marrom. Sobre ela, um livro de capa verde, um computador portátil e um caderno aberto, de frente para a escrivaninha, um menino sentado em uma cadeira verde, teclando. Ele tem cabelos encaracolados pretos, camiseta amarela, bermuda e par de tênis verdes.
símbolos de 5 estrelas e livros e texto minha estante

Alê @alexandrejjr02/07/2020

Souvenir da nostalgia

Ler Antonio Prata é um deleite. Esse paulista tem uma facilidade invejável com as palavras e neste “Nu, de botas” lança seu olhar especial em um tema universal: a infância.

Em entrevistas, Antonio gosta de lembrar que a boa crônica se sustenta nos detalhes e que por essa característica é um gênero que pode tratar de qualquer assunto, por mais absurdo que seja. Para o escritor, a crônica não se resume ao espaço diário, semanal ou mensal que jornais e revistas dedicam. A boa crônica perdura, é indiferente às agruras do tempo.

Creio que um termo-chave para a apreciação deste livro – como em toda boa obra – seja a experiência. No entanto, o nível atingido aqui beira ao surrealismo. Você não precisa ter vivido nos anos 1980 para se conectar com a felicidade intocável que a infância de muitos de nós proporciona. Eu, por exemplo, dei risadas porque pude imaginar meu pai ao lado do Antonio em suas peripécias. Aliás, vale lembrar que o autor é e não é, ao mesmo tempo, a personagem das histórias contadas. A proposta aqui é trair-se pela memória, pelo lúdico dêsse passado que com o tempo pode tornar-se desconhecido.

Antonio Prata faz um serviço louvável aqui: ele quer que você busque a sua criança interior ou, de certa maneira, viva aquela que você gostaria de ter sido. “Nu, de botas” é um presente: faça bom uso dele.

Capa de livro. Fundo em verde-claro. Ao centro, ilustração de um toca-discos antigo na horizontal, com os contornos em laranja, preenchido em bege e à esquerda, disco de vinil laranja com a parte interna em amarelo. Nome do autor em preto: ANTONIO PRATA e título do livro em preto: NU, DE BOTAS. Na ponta superior, à esquerda, logotipo da editora em preto.
emoji rosto sorridente e texto gostei (71)
ícone balão de comentário e texto comentários (10)
ícone caderno com caneta e texto comente

Reprodução de página de comunidades de leitores, com adaptações para a abordagem pedagógica. Disponível em: https://oeds.link/upbIDa. Acesso em: 20 fevereiro 2022.

Conforme a orientação dô ou dá professor ou professora, produza, individual ou colaborativamente, um comentário para rede de leitores, dialogando com a opinião do leitor. Em sua experiência de leitura da crônica “África”, o autor consegue mesmo provocar “sua criança interior”? Por quê?

Glossário

Maré
: fenômeno natural e cíclico de subida e descida das águas do mar, influenciado pela atração da Lua e do Sol.
Voltar para o texto
Marola
: onda pequena do mar, de rios etcétera
Voltar para o texto
Areal
: superfície de grande extensão coberta de areia.
Voltar para o texto
Búzios
: conchas do molusco gastrópode Cassis tuberosa, muito comum no litoral do Brasil.
Voltar para o texto
Maratimbas
: indivíduos simples, de pouca instrução, que em geral vivem em pequenos vilarejos.
Voltar para o texto
Catambá
: dança popular do Espírito Santo. (Ver boxe Clipe, na página seguinte.)
Voltar para o texto
Mangue
: região próxima de rio ou mar onde há uma lama escura e árvores e plantas baixas nativas de regiões costeiras da América, da África e da Ásia.
Voltar para o texto
Arrieiro
: nesse contexto, outro tripulante responsável pela canoa.
Voltar para o texto
Batelão
: barco a remo, pequena canoa.
Voltar para o texto
Bamboleio
: balanço.
Voltar para o texto
Dispersivo
: distraído, desatento.
Voltar para o texto
Audacioso
: aquele que consegue realizar coisas em circunstâncias muito difíceis, que se arrisca.
Voltar para o texto
Remorso
: inquietação ao perceber que se cometeu uma falta, um erro; arrependimento.
Voltar para o texto